19.8.06

Ilha 101
"Paulo é um nome tão comum"

Sentada sobre sua mala, Cíntia sorvia lentamente o perfume vago daquela hora aflita. Ele chegaria a qualquer momento, bêbado (a qualquer momento), com seus pulsinhos finos batendo contra a porta (a qualquer momento), perturbando os vizinhos (daqui a pouco, talvez?) com toda aquela fanfarra violenta, com as culpas a serem redistribuídas, o escorraço do patrão entalado no peito sendo descarregado sobre os móveis, as paredes, a pobre Cíntia.

Não sabia exatamente como ele havia descoberto onde ela estava, mas fazia mais ou menos uma meia hora que ele ligara anunciando estar vindo atrás delas. O rosnado no telefone era mais bêbado e mais agressivo do que de costume. Cíntia não ficou surpresa com o telefonema, sabia que ele era perfeitamente capaz de encontrá-la; ele tinha as ferramentas profissionais, os contatos, todos os artifícios de qualquer detetive particular, somados a uma dedicação maníaca a infelicidade dela; tudo potencializado pelos delírios de um alcoólatra invertebrado.

Ligou para a Recepção, descreveu Paulo brevemente como “um homem magro, alto, de cabelos castanhos, muito alcoolizado e violento.” Também falou sobre documentos falsos que ele mostraria tentando provar ser da Civil, mas sabia que isso era inútil; todo mundo tem medo da polícia.

No começo era pequeno, no começo era lisonjeiro – uma careta quando ela suspirava pelo galã da novela, perguntas passageiras, discretas, indolores. Um comentário sarcástico sobre o tamanho da saia, uma alfinetada sobre o perfume, uma xícara contra a parede, um tapa no braço, um soco no olho. Um pedido de desculpas no café da manhã, beijinho no olho roxo, rosas e bombons à noite. Outro soco, sem pedido de desculpas no café da manhã, sem beijinho, sem bombom. Um braço quebrado, um filho refugiado na casa da avó, três vizinhos insones, um policial, uma ameaça, uma mentira, nenhum B.O. A maior parte da vida profissional de Paulo fora gasta investigando casos de adultério – e um dia ele começou a trazer o trabalho pra casa. À Cíntia cabia toda a alienação de um réu inocente enquanto Paulo era investigador, promotor, carrasco e carcereiro. Na cabeça dele fazia sentido, na dela não. Cíntia o respeitava, ele, um homem que passou a vida inteira tentando ganhar o respeito de alguém até desistir; decidiu que onde não encontrasse o respeito criaria o medo. E era isso que incomodava – ele queria ser temido, não respeitado – Respeito? Uvas verdes.

Cíntia fechou a mala e caminhou pelo quarto, alimentando uma sensação inútil de estar esquecendo alguma coisa. Sim, precisava lavar o rosto, rímel escorrido não fica bem, também queria mijar antes de sair. Deixou a água da pia correr, sentou-se no vaso observando seus pés. Esmalte vermelho fica horrível quando descasca.
O telefone tocou.

(a) Deve ser ele.

(b) Não vou atender.


(c) Deve ser minha mãe.

(d) Foda-se, se for ele eu desligo.


Cíntia atendeu ansiosa e ouviu o som da rua – trânsito, buzinas e vozes tentando se erguer à cima de todos aqueles barulhos espalhados, concentrados e distorcidos na escuta de um telefone. Só Paulo e sua mãe sabiam que ela estava ali, e aquele era o som de uma ligação feita por dedos sujos em um orelhão instalado frente a um boteco. Conhecia aquilo. Em algum lugar entre o ouvido de Cíntia e o gancho do telefone uma voz estranha indagou quem era e o aparelho voltou a encostar contra o rosto dela.

“Quem é? Quem é?”

“Alô?”

“É do quarto 101? A senhora é a responsável por essa linha?”

“Sim, sou eu, Cíntia.”

“Bem, Dona Cíntia, a situação é o seguinte... Um homem, Paulo...peraí...(Cadê a identificação da vítima?)... Ele sofreu um acidente aqui em Botafogo, na Voluntários da Pátria. Nós achamos esse telefone na carteira dele, a senhora conhece esse homem?”

“Conheço. Quão sério é esse acidente?”

“Bem, minha senhora...Ele não sobreviveu.”

“Meu Deus do céu. Paulo? Tem certeza?”

“Peraí...(É essa aqui?)...Isso, Paulo Ferreira Maia, isso.”

“Ferreira Maia? Não, peraí, o Paulo que eu conheço não é Ferreira Maia.”

“Não? A senhora tem certeza?”

“Tenho, tenho, graças a Deus.”

“Tem certeza mesmo? Mas esse número estava em um papel...”

“Tenho certeza! Paulo é um nome tão comum, vai ver que ele conhecia a pessoa que ficou aqui antes.”

“Pode ser, pode ser, vou checar na Recepção. Desculpe incomodar a senhora.”

“Não, tudo bem, Nossa Senhora, que susto o senhor me deu!”

“Boa noite.”

(...)

“Qual o nome da senhora?”

“Cíntia Ferreira Maia.”

“Quarto 102?”

“Não, 101”

“Ah é, desculpa, tê sem os óculos...2 diária com café da manhã.”

“Isso. Aceita o Redeshop?”

“Aceita.”

“Aquele homem não apareceu aqui, Dona Cíntia.”

“Tô sabendo.”


J.

Um comentário:

Anônimo disse...

me lembrou rubem fonseca... a coisa do narrador também... a frieza, a morte e tal.. bem manero em júlia. agora aquela de a, b, c, d, aqulio é restrito a estruturação cerebral feminina, hahahah...brincadeira, muito bom o texto.