26.1.07

Relatório vulgar de uma noite

I

No Caminho

Eu vim ao nosso templo torto

No dia anterior ao seu retorno,

Eu vim procurar (e achei)

Rostos amigos pra me consolar.

II

Antes

Passei pelo Sheraton;

Senti meu coração se amassar

Feito uma bolinha de papel.

E, de Copacabana à Lapa,

(pela praia)

Esperei te ver

Em qualquer birosca –

-Pagar o meu táxi,

- Me beijar respeitando minha dor,

- Dizer que voltou pra me buscar.

Ah, tolinha.

III

Cúpula Comunicativa

Dezoito créditos no cartão,

Nenhum amigo que atenda

A porra do telefone.

Mesmo do orelhão

Eles sabem que sou eu.

IV

No balcão

- “Qual o seu nome?”

- “Salvador.”

- “Veio aqui salvar o que?”

- “A minha pele.”

V

Aqui nessa mesa de bar

O mundo definitivamente

Não precisa:

a) de mais fãs do Chico Buarque.

b) De pessoas que dizem que adoram Johnny Cash.

c) De gente que acha Roberto Carlos brega.

Não precisa,

Não precisa,

Não precisa.

Vai ver sou eu que não preciso.

Vai ver sou eu.

Vai ver...

Vai vênô....

VI

Quinto Chopp

O sétimo eu vou escrever em casa,

Já babando, meio em coma.

Só posso dizer com certeza absoluta

Que não vai prestar.

Mas pra que terminar bem

O que já começou mal?

Eu já nem estou mais triste;

Eu já nem estou.

“Fecha a 6”

A minha é a dezoito.

Ainda falta muito.

VII

“Diga as suas preces”

Eu não sei o que eu vim

Fazer aqui,

Mas Deus sabe.

Minha única vantagem

É saber que Ele sabe

(E que Ele faz por mim).



14.1.07

Bogey



Um ex-namorado meu dizia que se eu o traísse com Humphrey Bogart ele entenderia. Tentei fazer com que ele também extendesse sua compreensão ao Al Pacino, mas infelizmente ao Al ele não podia dar a confiança que ele dava à um homem morto. E hoje fazem 50 anos que Bogey morreu.

O "strong silent type" não existiria sem Bogart. Ele criou esse arquétipo. O sujeito caladão que encara seu drink enquanto se pergunta até onde ele iria por uma mulher e, entre o quinto ou o sexto trago, percebe que ele já foi metade do caminho e não há mais volta. Bode expiatório dos conformistas, corruptos, desonestos. Desafia figuras de autoridade, amarra o policial para pegar o verdadeiro bandido.

O cigarro eternamente suspenso na esquina do lábio. Qual é a dessas pessoas que tem um pacto misterioso com o vento e conseguem fumar sem usar as mãos? Eu não sei fazer isso. Entra fumaça do olho.

O sujeito que levou Dulci a descobrir o Cosmopolita. Precisava tomar um chopp para digerir A Relíquia Macabra, e entrou pela'quela porta de saloon do melhor bar da Lapa.

Bogart é a muito tempo a epítome do "cool." Não é moda, não é hype, é só cool. Não precisa de nenhum resgate. Ele está sempre lá. O anti-herói que realmente precisa se esforçar para fazer a coisa certa. Gente como a gente.

No fundo, no fundo, eu nasci para amar Humphrey Bogart.

J.

2.1.07

Shuffle - 2.0

Já brinquei disso aqui antes. O negócio é o seguinte - eu abro o meu ITunes aqui e ligo no shuffle. Escrevo um testo curto durante a duração de cada canção - meio livre associação. Depois eu escolho um pedaço da música em questão. Pronto. É meio subto e quase não presta. Mas é divertido.

1- Señor (Tales Of Yankee Power) – Bob Dylan

“Señor, señor, you know their hearts is as hard as leather.

Well, give me a minute, let me get it together.
I just gotta pick myself up off the floor.
I'm ready when you are, senor.”

No deserto as coisas sempre começam devagar, e é assim que elas terminam, a morte é lenta, longa, covarde. Aqui se morre aos poucos, sem nem se perceber. Mentes mais alertas talvez dêem falta de um pedaço de um baço, de uma corda vocal estourada, mas aqui nenhuma mente está alerta. O deserto não respeita a memória dos seus mortos, o deserto não tem memória. Eu te digo que, com certeza, ninguém entre esses dois acampamentos está ali por escolha própria e, se foi por escolha própria, te garanto que estão profundamente decepcionados com a escolha que fizeram. Miragem é salvação, jacaré é tronco. Qualquer coisa é alguma coisa para quem vagueia entre essas dunas. Qualquer coisa é muita coisa, coisa demais.

2- Conselho – Nora Ney

“Se você me encontrar pelas ruas
Não precisa mudar de calçada
Pense logo que somos estranhos
E que entre nós houve nada.”


Eu estou nesse bar faz meia hora, há meia hora sozinha e pouco me incomoda. Me dizem, alguns amigos mais preocupados, que beber sozinha é deprimente. Eu não vejo o que há de deprimente nesses goles largos e espaçados. Por que a minha sede precisaria de companhia? Eu tenho alguns desamores para mastigar, regurgitando e engolindo com esses goles largos. Engolir à seco é difícil, por isso bebo. Não é para me alegrar, não é para esquecer, é só para ajudar a desfazer um nó ou outro que se formou entre a minha boca e o meu peito. Nada de triste nisso.

3- House Of The Rising Sun – Odetta

“One foot, it’s on the platform
And another one on this train”


Escreva à Carminha e peça-lhe que aceite o conselho dessa puta triste. Diga-lhe que não tenho qualquer intenção de lhe sugerir as escolhas certas, mas que eu conheço, e sou prova viva, de todas as escolhas erradas que ela poderá fazer. No fim das contas, não há muito o que dizer, só peça que ela reze para se apaixonar pelo homem certo, por um homem que nunca ouse virar a mão na cara dela, ou lhe pedir dinheiro para mais um trago. Eu esqueci de rezar pelo homem certo e acabei com um homem que esqueceu de rezar por mim. No fim de repente seja sorte. Eu às vezes sinto que eu mereço coisa melhor. É ocasional a sensação, um lampejo de um outro mundo, que poderia ter sido meu, que me visita às vezes, enquanto vejo esses velhos nojentos gozarem sobre o meu corpo. Tomara que Carminha chegue lá.

4- 19 Días Y 500 Noches – Joaquin Sabina

“Tenían razón
mis amantesen eso de que, antes,
el malo era yo,
con una excepción:
esta vez,yo quería quererla querer
y ella no.”

Já não pago mais as contas dos viciados, dos cocaínomanos. Você sabe, a cocaína afeta o lóbulo frontal do cérebro, a parte que comanda as funções executivas – moral, ética, culpa. E é essa parte que você sente doer depois de algumas carreiras, e é a dissolução desse pedacinho de cérebro que gera esses assassinos de sangue frio, sem escrúpulos, que não perdem perdão a ninguém. Elias Maluco, Marcinho VP, fanáticos cheirados com espadas samurais. Essas pessoas que se tornam ilhas simplesmente por que fecham todos os portos, ou cobram impostos altos demais para qualquer mortal com algum pingo de amor-próprio.

Eu abri os meus portos, baixei alguns impostos, extingui outros completamente. Minha ilha se tornou uma zona-franca. E assim também se tornou um porto seguro para os amantes cruéis, falsários, piratas.
Que fechem os portos então. Eu vou ser ilha um pouquinho, desligar o telefone vermelho, quebrar o botão de emergência. Que o resto do arquipélago não me queira mal. Que não me queiram at all.

5- Blood Brothers – Bruce Springsteen

“Well the hardness of this world
Slowly grinds your dreams away
Making a fool’s joke
Out of the promises we made”

Veja. Cada uma dessas cicatrizes representa uma promessa que eu cumpri. Levando em consideração todas as promessas que eu fiz são poucas as cicatrizes, poucas demais para que eu possa me orgulhar do conjunto da obra. Me orgulho delas em particular, mas não do conjunto da obra.
Você me amarrou aos trilhos de um trem de uma linha desativada. A piada mais cruel de todas. Eu esperei morrer, ditei ao vento o meu testamento, recebi a estrema-unção das estrelas. Depois passei a rezar pelo trem, sendo assombrada pelo apito, pelo som das poderosas rodas que esfacelariam o meu corpo cansado. Antes isso do que morrer de sede e de fome.
Não sei como eu saí de lá. As cordas apodreceram, tanta chuva, tanta coisa passou por elas. Menos o trem. A piada mais cruel de todas.
Cada cicatriz, uma promessa que eu cumpri. Me orgulho de cada uma.

6- Meu Caboclo Não Deixa – Noriel Vilela

“O meu caboclo mandou te avisar
Que quem faz o meu acaba pagando
E não adianta fazer teu feitiço
Porque tu vai fazendo e ele vai desmanchando.”



Nasceu filho de Iansã, em uma encruzilhada onde cantam sete galos. Sua mãe era louca, seu pai fugitivo, nasceu torto, nasceu imundo, nasceu todo errado. Hoje em dia tem uma arma que late quando alguém de aproxima e um coração que atira quando alguém pisa em cima. Fecha e abre qualquer rua, por uma garrafa de pinga ou até menos. As piores das intenções estão por trás de cada beijo.


7- Estrela Dalva – Orlando Silva

“Estrela Dalva, minha estrela matutina,
Te fizeram pequenina
Para o amor que Deus me deu.
Eu te suplico, da-me flor em vez de espinho,
Ilumina o meu caminho,
Que o destino escureceu.”

Eu escrevo de um lugar onde não bate luz, onde talvez qualquer facho de luz nunca tenha iluminado aquela dança estranha das partículas de poeira. E eu sonho com uma luz difusa, morna, uma luz que contorna e aquece. São diversas luzes, um arquipélago de estrelas que ilumina um continente ainda não descoberto. Nem por isso é virgem, nem por isso é bom, só é desconhecido. Eu nunca rezei à Deus por uma passagem, eu não gosto de pedir nada à Ele. Eu fico guardando a minha oportunidade de pedir alguma coisa, quero ter crédito na praça, sabe. Mas seria bem gasto, todo o crédito de uma vida austera, seria bem gasto com um mapa para a ilha cintilante, entre Ursa Maior e o Cruzeiro do Sul...Eu não quero mais viver sob o signo de câncer, nesse trópico sujo.