10.11.08

E como vai você?

O encontro se deu no ponto de ônibus onde ele esperava em pé. Ela chegou depois. Imediatamente começaram a tecer um viés de conversa que servia apenas para adiar o inevitável silêncio constrangedor. Desfiaram um rosário de contas comuns - o Flamengo, literatura, música, filmes. Nenhuma réplica poderia ser comprometedora, nada ali poderia entrega-la. Até que emergiu uma pergunta, uma indagação direta para a qual ele poderia ser a resposta.
- "Como você está?"
Nos encontros casuais, de conhecidos que não gozam de grande intimidade, invariavelmente essa é a primeira coisa que se diz em forma de pergunta: - Como você está? - Essa pergunta é feita inocentemente, pois o interrogador não pode ser culpado por qualquer resposta que seja dada, pois ele realmente não sabe como o interrogado está, pois a ele não cabe qualquer culpa na resposta que ouvirá. Porém este não era o caso deles, que agora tentavam, inconfortavelmente, se adaptar aquele papel de conhecidos, de conhecidos que não mais gozam de grande intimidade. E, naquela conversa, no ponto de ônibus, essa pergunta se demorou até vir abafada pela voz dele.

"E você, como tá?"

Ela sorriu prontamente, dando a única resposta que seu orgulho poderia comportar:

"Eu estou bem".

Abaixavam e erguiam os olhos rapidamente, esquivando-se do longo olhar de amantes que não mais eram, negando o desolhar de estranhos que jamais poderiam ser. Ela transferia o peso do corpo de uma perna para a outra, uma mão eventualmente retirava uma mecha teimosa de cabelos do rosto, a outra se esfregava contra as pernas, a cintura, os braços, como se lhe açoitase um vento frio. Ele tinha em uma das mãos um cigarro e a outra manteve pousada contra o corpo na altura do cós da calça. Eventualmente se inclinava para frente, e jogava o corpo para trás com um movimento brusco, a fim de remanejar a pesada mochila que carregava sobre os ombros. Era um movimento familiar, que ela apreciara há pouco tempo como uma caracteristica definidora do homem que a amava - vê-lo fazer aquele movimento agora, sob aquelas novas circunstâncias, atingiu-lhe profundamente e a encheu de um enternecimento triste que, por alguns milésimos de segundos imperceptíveis, velou seus olhos e separou seus lábios, por onde o ar passou sem carregar palavra. E isso foi o bastante - o silêncio despencou do céu de setembro e aterrisou entre os ex-amantes, pesado e impenetrável como uma bala de canhão. Como se o baque houvesse amassado o asfalto, ambos olharam para o chão, para seus respectivos sapatos, para a rua, onde um ônibus agora encostava com os freios guinchando. Isso tudo foi coisa de cinco segundos. Ele mais uma vez remanejou o peso da mochila, alternando seu olhos entre os dela e a porta do 574 que se abria. Ele constatou com um sorriso relutante, algo entre tristeza e alívio - "Esse é o meu. A gente se vê."

(...)

O banco trepidante do ônibus parecia uma continuação de seu corpo ansioso. Sentia-se ofegante, mas respirava silenciosamente. Viu uma freira marchando no Leblon, fixa na calçada, como se carregasse os olhos no cocuruto. Pensou brevemente sobre a vida da freira. Seria uma vida chata? O que ela fazia fora da Igreja? Quanto ela se permitia dentro dos seus desejos? Mas agora não, ela olhava fixamente para o banco, e veio-lhe a resposta perfeita:

"Eu sou sincera demais para dizer que estou bem e orgulhosa demais para dizer que estou mal."

Mas eu, até onde sei, nunca diria isso.


3.11.08

Glenn Gould - The Goldberg Variations

É como uma faca entrando e saindo do coração.