22.9.06

20.9.06

Lembro De Sentir Frio (Na Noite Que Ele Esqueceu)
canção

Esperou, treze e tal,
No termômetro na esquina.
Um garçom, um sinal,
Matou a sede sozinha.
E sonhou qu'ele vinha
Pra nunca dizer adeus...
Lembra de sentir frio

Na noite que ele esqueceu.

E eu ando nessa rua,
Que agora é só minha,
Me vejo numa poça,
Pois choveu durante o dia.
Qualquer corpo me teria,
Se qualquer fosse o seu...
Lembro de sentir frio

Na noite que ele esqueceu.

São tantas as coisas
Que querem te derrubar, meu bem.
São tantas as pessoas
E você só quer encontrar alguém.
Mas Deus te achou sob uma marquise,
Joelhos na lama e lábios tão tristes,
O que é que te prende nesse lugar?
Correntes, memórias, amor ou azar?
Quanto tempo demora pro tempo passar?

Foi dormir, cinco e tal,
Acordou suando muito...
E dormiu o dia inteiro,
Acordou e estava escuro.
Mas sonhou qu'ele vinha
Sem palavras de adeus...
Lembra de sentir frio,
Na noite que ele esqueceu.

J.
às vezes, quando eu fico sozinha, imóvel, eu prevejo que, depois de tantos anos, você está na porta, prestes a entrar. Você toca a campainha, os cachorros latem muito. Quando entra na sala e nada precisa ser dito, o momento é digno, sem grandes comoções. Os cães se calam; você me beija, morno e longo. E tudo que eu consigo pensar é que eu devia ter depilado as pernas.

Então eu acordo. Os cães dormem.


J.
Ilha 104 - A Viagem De Negócios

Em uma manhã nublada de uma quarta-feira, Otávio desembarcou no Rio de Janeiro. Trazia apenas uma mala de rodinhas, composta cuidadosamente na noite anterior, e uma pasta de couro preta contendo papéis enfadonhos que pautariam a sua visita. Não planejava qualquer aventura turística ou passeio agradável pela orla carioca, fizera esses planos em outras viagens ao Rio e eles se perderam entre os papéis enfadonhos que sempre o acompanhavam. E para Otávio onde não haviam planos não havia vontade – não por simples abdicação resignada, mas porque a alegria dele vinha de ver os planos em ação, não da ação em si.
Viajava muito pouco a lazer e, quando o fazia, se sentia na obrigação de voltar à pequena cidade no extremo sul do país, de onde ele e a esposa provinham, e trazer notícias a sua família saudosa. Aos homens reportava a situação da política e da construção civil de São Paulo enquanto sua esposa e as outras mulheres teciam, com dois dedos de maldade e um de desdém, uma prosa investigativa da vida dos locais. Uma vez ficaram lá por duas semanas: foi o máximo que conseguiram sem que Otávio enlouquecesse com as asneiras do pai, e sem que Sílvia atirasse a sogra por uma das amplas janelas do casarão colonial. Mesmo assim Otávio teve que aturar, durante a viagem de volta, o longo relato da esposa, em ordem cronológica, de picuinha por picuinha: “Nós mal chegamos e ela já...” (...) “Você acredita que logo antes da gente ir ela veio me dizer que...”. Ele conhecia bem a mulher que trazia no banco do passageiro e sabia que um pedido de silêncio seria recebido como ofensa e só resultaria em mais falação. Então simplesmente a deixava discursar enquanto tentava se concentrar na paisagem que se embaçava, encoberta pelas palavras incansavelmente metralhadas por Sílvia. É verdade que em alguns momentos queria esganá-la, mas na maior parte do tempo estava contente por não ter que emitir opinião, só ouvir.
Chegou ao Rio de avião e, quando esse se encontrava a poucos metros da pista, já organizava seus horários, locações e exigências profissionais. Toda sua agenda era construída ao redor da sua necessidade de nove horas de sono diárias. Cada compromisso, hora e hora e meia gastas com olhos abertos era apenas uma subtração do tempo que pretendia gastar dormindo. Morfeu era seu grande e verdadeiro amor.
A primeira coisa a se fazer era ligar para Sílvia. Gostava de fazer isso, ela era sempre doce ao telefone. Depois tomaria banho e iria de encontro aos negócios, no Centro, Avenida Rio Branco. A reunião começaria às dez horas, seria interrompida para um breve mastigar em um restaurante à Kilo. Depois disso a coisa ficava detestavelmente incerta, mas não deveria se estender além do fim da tarde. Então seria preciso voltar ao hotel e escrever relatórios, enviar e-mails, solicitar documentos que pudessem estar em falta.
Otávio ligou para Sílvia; ela foi doce. Chuveirada, táxi, Rio Branco. A comida do restaurante à Kilo era muito ruim, mas ninguém parecia se importar. Acabou no fim da tarde. Mandou e-mails, requereu documentos, escreveu relatórios.
Acordou no dia seguinte vitorioso, com suas nove horas de sono conquistadas e um pouco de baba acumulada no canto da boca. Dormiu esparramado de bruços, bem no meio da cama de casal. Luxo ocasional. Não pode comemorar a vitória com a preguiça – os seus minutos, que compunham aquele fabuloso exército de vinte quatro horas, se sacrificaram bravamente em prol de seu sono; metade de um batalhão de sessenta foi dizimada. Estava atrasado para o seminário.
Saiu apressado, sem tempo de arrumar seus papéis, fazer a cama ou catar as roupas espalhadas no chão. Não gostava de deixar as coisas assim.
No táxi tentava lembrar se o hotel oferecia o serviço de camareiras. Não podia evitar sentir um pouco de vergonha em pensar que havia deixado toda aquela zona para que alguém a organizasse. Entendia que era exatamente essa a natureza do trabalho dessas pessoas. Mas não era isso. O que o incomodava era o fato de que a desordem e o descaso eram tudo que refletia sua existência naquele mundo alugado. Os papéis desorganizados e as roupas dispersas não poderiam dar a impressão correta sobre aquele homem correto, que doava casacos velhos para a campanha do agasalho, que na sua juventude batalhou o direito de sindicatos, que se preocupava tanto com a ordem e a retidão.
Durante o seminário, Otávio não conseguia se concentrar em nada do que era dito pelo principal palestrante. Olhava o relógio, impaciente, e pensava se elas já haviam vindo ou não, se elas estavam lá naquele momento. Reviu, desgostoso, seu último flash do quarto. No banheiro só havia estado para tomar uma ducha...

Não.

Por volta das cinco da manhã acordou com uma ereção. Sim, lembrava-se agora. Foi ao banheiro se aliviar e gozou com força e abundância que não lhe eram comuns. A porra atingiu a parede, na altura de seu umbigo, e escorreu para baixo, volumosa. Limpou tudo com papel higiênico.

Tudo?

Não seria exagero dizer que a esta altura Otávio estava extremamente nervoso. Procurou, no seu vago acervo de imagens daquela punheta sonolenta, algum traço de porra negligenciado na parede, no chão. Os azulejos eram brancos, as luzes não estavam todas acesas, era provável que alguma amostra houvesse permanecido lá, para ser encontrada por elas, para se juntar as outras evidências que comporiam o seu retrato mudo, indefeso, frente aquelas mulheres cruéis. Pois seriam mulheres, com certeza e, com certeza, o julgariam, o pintariam como um porco solitário. De fato seria mais de uma, seriam duas que trocariam entre si achados e risadas. O xingariam por ter de limpar sua esporra, da qual ele próprio tinha nojo.

Talvez ainda não fosse tarde demais. Talvez ainda não. Ligaria para o hotel naquele minuto, proibiria expressamente qualquer visita de qualquer camareira ao quarto 104.

Se espremeu através da platéia lotada a alcançou um corredor silencioso da onde poderia fazer a ligação. Procurou em todos os bolsos, da calça, do paletó e da pasta, o telefone celular. Procurou em vão; na pressa o abandonou na mesa de cabeceira. Não bateu com a cabeça contra a parede, mas teve muita vontade.
Otávio renegou a mesa redonda e se algum colega perguntasse em que pé estava o debate não saberia responder. Nada havia ouvido ou visto. Apanhou um táxi e nem enxergou a praia por onde passou. Calou o motorista, com grunhidos peçonhentos, todas as vezes que ele tentou puxar uma conversa. Otávio pagou e saiu apressado, fazendo o taxista se afastar com um pouquinho mais de fé no estereotipo do paulista estressado.

Passou batido pelo lobby, perguntar qualquer coisa levantaria suspeitas.

Abriu a porta, respiração staccato. Viu a colcha novamente cobrindo a cama, os papéis empilhados junto ao laptop, as roupas penduradas na cadeira. Tarde demais, tarde demais. Desconsolado entrou no banheiro e, acendendo todas as luzes, procurou algum indício do seu espólio viscoso. Não encontrou nada.
Uma hora depois fez o check-out. Passou os dois dias restantes em outro hotel. Não podia mais ficar ali, convivendo com as supostas impressões das camareiras.
Ligou para a esposa para informar a mudança de paradeiro. Ela ficou curiosa e quis saber o porquê daquela migração súbita. Otávio deu de ombros, como se ela pudesse o ver: “Não limpavam direito lá, era muito sujo.”



J.
100 Ditados & Provérbios do Mundo Mulçumano

Eu tenho um dicionário, em inglês, de ditados e provérbios mulçumanos que eu simplesmente amo. Sou, no geral, uma apaixonada por esse tipo de coisa - expressões idiomáticas, gírias, figuras de linguagem...Essas coisas são o que temperam qualquer lingua com os traços mais particulares de uma cultura. O genial desses ditados mulçumanos é o fato de que, ao mesmo tempo que eles usam imagens que possam nos parecer um pouco estranhas, a conclusão e a sabedoria é universal. Escolhi cem que eu acho muito bons, e aí estão. Os meus favoritos entre os favoritos estão em negrito.

1- Peça o conselho de cem homens; ignore o conselho de outros cem; depois volte a sua decisão original. (Libanês)
2- O homem que quer se embebedar não conta os copos (Árabe)
3-
Todo falcão morre com os olhos na presa. (Árabe)
4- Todo analfabeto que ser primeiro-ministro. (Turco)
5- Nem tudo que é redondo é nós, nem tudo que é comprido é banana. (Libanês)
6- Coma o que você gosta, mas se vista como todo mundo. (Libanês)
7- Se alguém cagar na sua mão, jogue na cara dele. (Maltês)
8- Melhor estar errado como todos do que estar certo sozinho. (Mouro)
9- Não adianta pedir a um cantor que cante ou a um dançarino que dance – eles não o farão. (Libanês)
10- Se você deseja ser obedecido não peça o impossível. (Árabe)
11- A merda sempre cai em quem está embaixo (Libanês)
12- Melhor a tirania do gato do que a justiça dos ratos (Libanês)
13- Hoje você me dá lã, amanhã leva minha ovelha. (Egípcio)
14- O homem solteiro é irmão do diabo. (Tunisiano)
15- Beleza é beleza, sóbrio ou bêbado. (Mouro)
16- De bom dia a um beduíno e você já perde um pedaço de pão. (Marroquino)
17- Deixe os mendigos se casarem e tudo que você terá serão mais mendigos. (Libanês)
18- É mais fácil ser solteiro a vida inteira do que ser viúvo por um mês. (Libanês)
19- O nascimento é mensageiro da morte. (Árabe)
20- Se você encontrar um cego, jogue-o no chão e roube sua comigo – Você não terá sido mais misericordioso que Deus. (Libanês)
21- O homem de um olho só não é cego. (Libanês)
22- Um livro no bolso é um jardim no bolso. (Árabe)
23- Que Deus te aflija com os serviços de um carpinteiro, um pintor e um pedreiro! (Libanês)
24-
É melhor ter mil empregados que roubam do que um sócio com quem se deve acertar as contas. (Libanês)
25- Ele queimaria uma cidade para acender seu cigarro. (Libanês)
26- Tem medo de ficar com fome se cagar. (Libanês)
27- Suas palavras são como peido em um chão de pedra. (Libanês)
28- O homem que chora por todos logo perde os olhos. (Turco)
29- Não há luz numa casa sem criança. (Sírio)
30- Aquele que viu a terra dos cristãos desperdiçou os seus dias. (Marroquino)
31- Jante com um judeu, mas busque abrigo na casa do cristão. (Árabe)
32- Quando você vê alguém sentado na rua você sabe que aquilo é melhor que a casa dele. (Mouro)
33- Café sem tabaco é como um judeu sem rabino. (Marroquino)
34- Vinagre barato é tão doce quanto mel. (Árabe)
35-
Compre e venda e seu nome não perecerá. (Iraquiano)
36- O bazar não reconhece nem pai nem mãe. (Turco)
37- Até a mão da compaixão é ferida pelo escorpião. (Persa)
38- Faça o que o seu vizinho faz ou feche a porta. (Tunisiano)
39- Quando a neve derrete a merda aparece. (Libanês)
40- O ladrar do cão não afeta as nuvens (Tunisiano)
41- Quando as coisas vão mal, visite o cemitério. (Tunisiano)
42- Quem nunca viu carne fica feliz com tripas. (Omaniano)
43- Todos estão satisfeitos com o cérebro que tem e ninguém está satisfeito com suas finanças. (Omaniano)
44- Se você ama a lua, ignore as estrelas. (Mouro)
45- As palavras da noite são manteiga que derreterá ao amanhecer. (Tunisiano)
46- Para destruir a teia, destrua a aranha. (Maltês)
47- Um suborno remove o turbante do juiz. (Libanês)
48- O homem que vai ao mercado sem nada nos bolsos é ladrão. (Sudanês)
49- O homem sem malandragem é como uma caixa de fósforos vazia. (Omaniano)
50- Até uma maldição, na hora certa, é um louvor à Deus. (Libanês)
51- A morte é um camelo negro que se ajoelha no portão de todo homem. (Árabe)
52 - O cemitério nunca rejeita um corpo. (Libanês)
53-
Quem voltou com notícias do túmulo? (Árabe)
54- Quem não foi convidado para o casamento, não vai aparecer no funeral. (Árabe)
55- Seu credor é seu sultão. (Marroquino)
56- Não pense que um homem sabe cozinhar só porque você o vê acendendo o fogo. (Libanês)
57- O poço é fundo, a corda é curta. (Árabe)
58-
Quem ama a mulher casada não deve temer a morte. (Maltês)
59- O destino afaga poucos e molesta muitos. (Turco)
60- Lute pela honra pois a desonra é fácil de conseguir. (Árabe)
61- O dia nega as promessas da noite. (Libanês)
62-
Tão sem graça quanto um judeu numa mesquita. (Omaniano)
63- Cem amigos são poucos, um inimigo é demais. (Argelino)
64- Olho que elogia, olho que inveja. (Tunisiano)
65- O orvalho não enche o poço vazio. (Árabe)
66- Quem cai no rio não teme a chuva. (Omaniano)
67- Confie em Deus, mas amarre seu camelo. (Turco)
68- Um milhão de obstáculos te atrapalharão até no caminho para a cova. (Libanês)
69-
Se um homem entra numa casa que ele sabe estar contaminada pela praga, ele não morre como um mártir. (Árabe)
70- Uma pedra é uma maçã, quando vinda da mão de um amigo. (Árabe)
71- Seus irmãos são os que te compraram, não os que te venderam. (Libanês)
72- Quem te dá alguma coisa já tirou alguma coisa de você. (Maltês)
73- Meninos pensam em navios, meninas pensam no futuro. (Maltês)
74- Deus não é visto. Ele é reconhecido pela mente. (Árabe)
75- Deus é mais misericordioso do que a sua criação. (Árabe)
76- Nenhum fardo é mais pesado do que a gratidão. (Turco)
77- Chore pelos vivos, não pelos mortos. (Turco)
78- Peixes e hóspedes começam a feder depois do terceiro dia. (Beduíno)
79- Quando Deus quer ver um pobre feliz Ele faz ele perder uma moeda e depois encontra-la. (Turco)
80- Só três coisas justificam a pressa: O casamento de uma filha, o enterro de um morto e o jantar de uma visita. (Libanês)
81- O coração, como uma criança, espera pelo que ele deseja. (Turco)
82-
O homem é inimigo do que ele não conhece. (Árabe)
83- A cura para os preços altos é a abstinência. (Tunisiano)
84- Quando um governante é justo todos estão no exército. (Persa)
85- O coração gentil não envelhece. (Tunisiano)
86-
A forca é para os pobres. (Maltês)
87- A mãe do mentiroso é virgem. (Árabe)
88- Melhor a morte à maconha indiana. (Turco)
89- Quando o trovão peida é porque vai chover merda. (Libanês)
90- Para você a honra, para mim o lucro. (Curdo)
91- Merda nunca vira creme. (Libanês)
92-
Tema quem não teme a Deus. (Árabe)
93- O pobre morre antes de o rico dar. (Turco)
94- Antes de entrar, pense em sair. (Árabe)
95- Deus faz o ninho do pássaro cego. (Árabe)
96- Não se comprometa a nada até você ter visto o mar. (Turco)
97- Se alguém aprendesse assistindo todo cachorro seria açougueiro. (Turco)
98- O sono não visita quem tem fome, frio ou medo. (Sírio)
99- Se você falar, não tenha medo. Se tem medo, não fale. (Iraquiano)
100- Um ano ruim tem vinte quatro meses. (Libanês)

J.Dbass (porque é assim que se escreve em árabe - não existe a letra "e")

10.9.06

Coisa Aleatória:

O homem que uma mulher ama pode ser feio, mas o que ela "está só pegando" tem que ser bonito.

J.
Ilha 103
Coke, Chair & Noose (Uma Canção Para Ricardo Manuel)


Richard Manuel se matou em um quarto de motel, devia ser um quarto parecido com esse, um quarto barato, ele já estava sem muito dinheiro. Foram as drogas e a falta de dinheiro, ou talvez o dinheiro e a falta das drogas. Mas dizem que ele ameaçava o tempo todo, fazia o nó o tempo todo, ninguém mais levava a sério. Achavam que era só uma tentativa patética de um junkie para chamar a atenção.

Checked in, never checked out.

Ele chegou lá com a esposa. A esposa o amava muito, sempre o impedia no último minuto, tinha salvado sua vida incontáveis vezes, apesar de nunca acreditar que a vida dele realmente estivesse em risco. Ela já não estava botando muita fé nos extremos da depressão de Manuel. Qual seria o nome dela? Diana? Martha? Sue? Rita? Pam?

Dizem que na época ela estava tendo um caso, já pensava em largar Richard, não agüentava mais a depressão crônica, os cortes rasos e covardes nos pulsos, a corda no pescoço literal e metafórica. Foi em um quarto igual aquele, com certeza, ela o viu mais uma vez fazendo o nó com os olhos imóveis, posicionando a cadeira, os olhos castanhos vítreos, loucos, estreitos, secos.

“Ah, Richard, como era belo o seu falsete, como era belo, ninguém tinha um falsete mais bonito! Como um anjo, a voz como a de um anjo!”

(...)

Quando viajava durante as férias, Frank preferia ficar em hotéis baratos. Os grandes hotéis de cinco estrelas estavam muito associados ao seu trabalho já que esses eram os tipos de hotéis escolhidos para abrigá-lo em países estrangeiros durante suas andanças profissionais. Hilton, Sheraton, Mariott – esses estavam fora de questão para uma viagem como aquela. Sim, o mínimo de conforto era necessário; roupa de cama limpa, uma camareira ocasional, serviços de lavanderia, um bar no lobby; o resto era inteiramente dispensável. Além do mais quem pagava as contas dos hotéis caros era a empresa, ali tudo viria dos seus bolsos que, por mais fundos que fossem, eram bem guardados pelo que ele classificaria como “uma noção da importância do dinheiro ganho com o trabalho honesto instalada em mim por meu pai”, mas que na verdade não passava de pura muquiranice.

Abriu a janela! No U.S as janelas dos quartos normalmente não abrem; uma medida provisória contra suicídios. No Hilton, em qualquer Hilton do mundo, a janela não abre por inteiro. Só te dão uma fresta egoísta, incapaz de acomodar a passagem de um corpo desesperado. “Vai ver foi por isso que Ricky se enforcou – não podia se jogar.”

Ele pensava nisso enquanto desfazia as malas. Poderia ter pensado nas suas novas percepções sobre aquele país estrangeiro, nos seios da garota da recepção, ter projetado esperanças de cópula selvagem sobre os lençóis gastos. Mas pensava no fim de Richard Manuel em um quarto que, ele tinha certeza, era igual aquele onde agora ele contava aquele dinheiro estranho. Frank tinha dinheiro e se sentia bem disposto, como um garoto. Nos dias frios suas costas doíam como se desmoronassem sobre elas todo o peso de seus 55 anos, mas ali, no esplendor morno daquele país tropical, sentia sua juventude, a muito enterrada sobre pounds de cinismo coorporativo, ascender lentamente, como um vapor, em direção a seus lábios. Os prédios ao redor do hotel, tão feios, tão pobres, eram belos aos seus olhos dispostos a ver beleza subjetiva em tudo que lhe era desconhecido. Viu um pássaro, em uma rasante magnífica, capturar uma borboleta amarela. Uma idéia lhe veio, abrupta, “antes do predador do que a presa.”. Não poderia explicá-la, mas naquele momento pareceu-lhe um vislumbre de genialidade.

Espreguiçou-se com vigor frente à janela, sentindo um resto de sol preguiçoso arder em seu antebraço. Uma melodia passeava presa por sua garganta, mas ele não conseguia identificá-la, faltavam palavras para que ele pudesse articular aquela canção que o perseguia desde a hora em que ele chegara ao aeroporto em Dallas. Era como uma dor de ouvido crônica que ia e vinha, mas estava sempre ali. Tinha sumido no avião; vai ver foi a despressurização da cabine. Frank já não pensava no triste fim de Richard Manuel, agora se esforçava para compor um figurino que justificasse todas as promessas doces que o vento poluído de fim da tarde sussurrava em seus ouvidos. Sobre a cadeira botou a única peça que seus motivos não questionavam – a camisa. Não era nem usada o bastante para detonar falta de dinheiro e descaso, nem tão nova a ponto de gerar a percepção de janota deslocado. As listras verticais diminuíam a barriga (que ele sequer tinha, mas ouvira tanto sobre o benefício adelgaçador das linhas verticais que se sentia na obrigação de lançar mão desses conhecimentos) e alongavam seu tronco compacto. Era justa o bastante para fazer jus às cinco horas semanais gastas em uma academia, e folgada o suficiente para evitar conflitos com a sua masculinidade. Tendo a camisa como base, construiu o resto do conjunto com facilidade – a calça de jeans preto, as finas meias brancas e um belo par italiano de couro marrom-brilhante. Uma vez vestido, penteou-se com esmero, fazendo uso de grandes quantidades de um gel transparente, e se mediu no espelho. Ele não era exatamente belo, mas tinha o que a sua ex chamava de um “charme essencial” que se traduzia nos seus movimentos não-calculados: o ângulo das sobrancelhas quando demonstrava preocupação, a forma como manuseava um copo, suas passadas firmes e irregulares que frustravam as tentativas de sua ex de caminhar ao lado dele – hora os passos eram curtos e lentos, hora longos e rápidos, sempre imprevisíveis.

Observava a janela enquanto esperava um telefonema de seu único amigo brasileiro que havia lhe prometido leva-lo a lugares maravilhosos, cheios de moças fogosas facilmente seduzíveis pelo almighty dollar. Frank imaginava todas as estórias fantásticas que iria contar para seus amigos quando os revisse em Houston - os velhos babões estariam ansiosos para ouvir os mínimos detalhes, mas ele narraria tudo com o seu melhor ar blasé, esperando que eles exigissem as respostas para as perguntas que ele sabia que fariam. A inveja dos amigos casados seria sua vingança por todas as vezes que o fizeram ver suas enfadonhas fotos dos filhos e da esposa tiradas em um ski –resort em Aspen e, mais ainda, uma vingança contra uma parte, insignificante, dele que gostaria de ser uma pessoa ocupada com filhos e uma esposa que posassem para fotos vestindo roupas histriônicas em montanhas brancas. Mas esse era só um lampejo de uma outra vida que o assaltava em algumas raras madrugadas especialmente silenciosas e não era digno de ser revisitado naquelas circunstancias tão livres e promissoras.

O suor começou a acumular-se nas suas pequenas costeletas bem aparadas e na parte de trás da sua nuca. Morava no Texas há anos e mesmo assim não havia se acostumado ao calor, tão raro e gentil na gélida Detroit, sua terra natal. Também não havia se habituado aos ar-condicionados, que lhe faziam espirrar incontrolavelmente. Quis aproveitar a tão rara ocasião de estar em um quarto de janelas mais manejáveis – abriria todas e deixaria o vento entrar e limpar aquele ar moroso e cansado. Abriu as janelas ao máximo e, olhando para cima, resolveu fazer o mesmo com os basculantes estreitos e compridos. Ergueu os braços e esticou o corpo tentando alcançar a manivela prateada, mas mesmo na ponta dos pés seu esforço foi inútil. Viu a sombra da cadeira, de rabo olho, projetada no chão, e resolveu usa-la. A cadeira era leve, ele a posicionou logo abaixo da alavanca e lá subiu. A alavanca de metal estava quente. Forçou-a até que ela gemeu um pouco, mas recusou a se mover. Redobrou a força, sem resultado. Com uma determinação irritada, debruçou todo o peso do corpo na alavanca que estalou e cedeu repentinamente, fazendo Frank se desequilibrar por um instante. Quase recobrou o equilíbrio no último segundo, mas já era tarde demais: caiu de costas no chão, o tronco e os braços primeiro, a cabeça aterrisou sem sofrer os danos que foram absorvidos pelo resto do corpo. Deitado no chão, olhando para o teto manchado por infiltrações, Frank calmamente avaliou as dores que cercavam seu corpo e, rindo, se despediu da sua sensação de juventude brevemente reconquistada. Virando a cabeça para a esquerda viu a cadeira tombada de lado e novamente pensou na morte de Richard Manuel.


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Richard Manuel se matou em um quarto de motel em Orlando, Flórida, 4 de Março, 1986, depois de um show. Ele tinha 42 anos, ele era canadense, estava muito longe de casa. Algumas fontes dizem que ele estava lá com a esposa. Quando ela saiu do quarto por alguns minutos, Richard amarrou uma corda em uma viga no teto e pos o outro extremo, em nó, ao redor do pescoço. Subiu em uma cadeira e de lá pulou para a morte. Foi encontrado pela esposa poucos minutos depois. Junto à cadeira tombada encontraram um montinho de cocaína e uma garrafa de Grand Marnier.


J.

5.9.06

Mais uma tradução minha, essa para um poema do Auden (Funeral Blues) - aqui no original: http://www.egr.unlv.edu/~rho/interests/other/poems/w.h.auden/funeral.blues.html

Blues Funeral

"Pare todos os relógios, desligue o telefone,
Cale o latido do cão que tem fome,
Silencie o piano e com o abafado tambor
Tragam o caixão, que entrem os que tem dor.

Deixe aviões com seus motores gemendo,
Rabiscando “Ele Está Morto” no firmamento,
Ponha laços de crepe nos pescoços alvos das pombas públicas
E deixe o guarda de trânsito vestir as mais negras luvas.

Ele era meu Norte, meu Leste, meu Oeste e Sul,
Meu repouso de Domingo e a minha semana comum,
Meu meio-dia, minha meia noite, meus versos cantados;
Eu achei que o amor duraria sempre: eu estava errado.

As estrelas agora não são desejadas: apague cada uma;
Desmonte o sol e guarde a lua;
Escoe o oceano e devaste a flora,
Pois nada poderá vir para o bem agora."


J.
Eu tenho me entretido, antes de dormir, com algumas tentativas de tradução - quem me conhece sabe a alegria que me dá ficar quebrando a cabeça para encaixar uma palavra onde outra estava. É o mesmo tipo de "barato intelectual" que brincar de palavras cruzadas me dá, só que muito mais (muuuito) recompensador. Eu, metida que sou, tentei traduzir um dos meus poetas favoritos (e provavelmente, junto com Manuel Bandeira, o que mais me influenciou), T.S Eliot. Tentei evitar o que me incomoda nas traduções que li - uma formalidade patente que, pelo menos ao meu ver, não condiz com a poesia de Eliot. Para ler no original:( http://www.infoplease.com/t/lit/wasteland/burial.html)

O Enterro Dos Mortos

Abril é o mês mais cruel, germinando
Lilases da terra dos mortos, misturando
Memórias e desejo, avivando
Raízes inertes com chuva da primavera.
O inverno nos manteve aquecidos, cobrindo
A terra com a neve omissa, nutrindo
O pouco que vida com tubérculos ressequidos.
O verão nos surpreendeu, tomando o Starnbergersee
Com um aguaceiro; nós paramos junto aos pórticos
E seguimos na luz do sol, dentro do Hoftgarten
E bebemos café, e falamos por uma hora.

Bin gar keine Russin, stamm' aus Litauen, echt deutsch

E quando éramos crianças, hospedados com o arquiduque,
Meu primo, ele me pôs em um trenó,
E eu estava assustado. Ele disse, Marie,
Marie, segure firme. E para baixo fomos.
Nas montanhas, aí, você sente-se livre.
Eu leio, a maior parte da noite, e vou para o sul no inverno.

Quais são as raízes que se agarram, que galhos crescem
Desse refugo pedroso? Filho do homem,
Não podes dizer, ou adivinhar, pois apenas conheces
Uma pilha de imagens partidas, onde o sol bate,
E a árvore morta já não dá abrigo, os grilos nenhum conforto,
E a pedra seca nenhum murmuro de água. Há
Apenas uma sombra sob uma pedra rubra,
(Venha para sob a sombra da pedra rubra),
E eu te mostrarei algo que difere ou
Da sua sombra que na manhã cavalgando atrás de ti
Ou da tua sombra da tarde erguendo para encontrá-lo.
Eu te mostrarei o medo em um punhado de pó.

Frisch weht der Wind

Der Heimat zu
Mein Irisch Kind,
Wo weilest du?

“Faz agora um ano que me destes jacintos;
Eles me chamavam de garota dos jacintos”
- Mesmo assim voltastes, tarde, do jardim dos jacintos,
Teus braços cheios, teus cabelos molhados, eu não pude
Falar, meus olhos falharam, eu não era nem
Morto ou vivo, eu não sabia de nada,
Olhando para dentro do coração de luz, o silêncio.
Od' und leer das Meer.

Madame Sosostris, vidente famosa,
Estava muito resfriada, mesmo assim,
É conhecida como a mais sábia mulher da Europa,
Com seu baralho perverso. Aqui, disse ela,
Está sua carta, o marinheiro Fenício afogado,
(Essas são pérolas que eram seus olhos. Veja!)
Aqui está beladona, a Dama dos Rochedos,
A Senhora das Situações.
Aqui está o homem com três bastões, e aqui a Roda,
E aqui o mercador caolho, e essa carta,
Em branco, é algo que ele leva nas costas,
Que me foi proibido ver. Eu não vejo
O Enforcado. Tema a morte por água.
Eu vejo multidões, vagando em círculo.
Obrigada. Se veres a querida senhora Equitone,
Diga-lhe que trago o horóscopo eu mesma:
Todo cuidado é pouco hoje em dia.

Cidade Irreal,
Sob a névoa marrom de uma alvorada de inverno,
Uma multidão fluindo pela Ponte de Londres, tantos,
Eu não havia pensado que a morte desfez tantos.
Suspiros, curtos e irregulares, foram exalados,
E cada homem fixou seus olhos ante seus passos.
Fluindo montanha acima e Rua King William abaixo,
Até onde Saint Mary Woolnot marcava as horas
Com um som surdo na badalada final das nove.
Lá eu alguém que eu conhecia, e o parei berrando “Stetson!
“Tu que estavas comigo nos navios em Mylae!
“Aquele corpo que plantastes ano passado em teu jardim,
“Já começou a brotar? Florescerá esse ano?
“Ou a geada repentina perturbou seu leito?

“Oh mantenha o cão a distância, esse amigo do homem,
Ou com suas unhas ele o desenterrará novamente!

"Você! hypocrite lecteur!—mon semblable,—mon frere!"



J.

Inf�ncia, P�lulas e S�o Sebasti�o Posted by Picasa

Favela Feminina 2 - Esmaltes, Cremes e tudo mais. Posted by Picasa

Favela Feminina Posted by Picasa

4.9.06

Outra Quarta-Feira

Da primeira vez que o vi o esqueci logo em seguida. Ele não foi muito simpático, não tanto quanto os seus outros colegas que me cercaram de atenção e cortesia. Falávamos e riamos muito na recepção enquanto ele, nos fundos, jogava Paciência no computador. Às vezes ele parava e, sem mexer o corpo, botava a cabeça de lado, jogada para trás, rindo de alguma coisa recém-dita. Depois voltava ao seu jogo. Em um momento ele girou a cadeira e ficou sentado, lá, olhando para nós. Parecia, por alguns segundos, muito entediado. Quando ele ficava assim o cinza se tornava neutro, sem rumo, e ele botava o polegar sob o coldre, na altura do ombro esquerdo, afagando a tira. Ficava assim por pouco tempo e logo ria da piada do amigo, ria com gosto, uma mão espalmada contra a perna, a cabeça inclinada com vontade, os dentes brancos brilhando, as narinas dilatadas.

Eu havia ido à delegacia dar queixa de um furto – no show do Rolling Stones, na praia, Copacabana. Levaram minha carteira, meus documentos, precisava de um B.O para viajar na semana seguinte – não te deixam entrar no ônibus sem identidade, mas com o B.O deixam. Os policiais foram muito prestativos – conversamos sobre o show, sobre música, eu falei que tocava.

Foi lá que eu o vi pela primeira vez, e todas as outras vezes seguintes.

Na época eu estava lendo muito Rubem Fonseca, um livro atrás do outro, de enfiada. Vai ver que foi por isso que eu prestei atenção nele e o achei charmoso. Ele era o rosto de um personagem que eu gostava. Ele mal olhou para mim e, quando olhou, foi com os olhos entediados, vazios. Olhou através de mim e através do vidro transparente, para a Nossa Senhora de Copacabana. Através de mim. Ele era bonito sim, achei ele bonito, teria o achado bonito se o tivesse visto em um supermercado, no ônibus, na fila do banco. Mas eu provavelmente o achei charmoso por que ele era policial, e por que o personagem do livro era policial. Era um charme por tabela, mas muito real para mim. Eu queria conversar com ele, queria muito saber o que ele acharia de mim. Queria me aproximar e dizer:

“Eu consumo drogas ilícitas, eu não tenho nenhum respeito por figuras de autoridade, eu tenho uma necessidade intrínseca de duvidar delas. Uma vez eu roubei uma garrafa de whisky do Pão de Açúcar. Você me prenderia? Você me beijaria?”.

Ele me causou tudo isso só com um olhar sem rumo e eu sai de lá me achando muito boba. Uma perfeita idiota com uma necessidade de chocar um policial. E logo esqueci dele, dois dias depois ele já não existia em mim.


Alguns meses depois eu passei pela Delegacia (eu passo em frente a ela quase todo dia) indo para o banco, e passei por ele na calçada. O braço dele tocou de leve o meu ombro enquanto eu manobrava, desengonçada, o meu corpo pela calçada apinhada de gente. Deviam ser umas onze da manhã. Ele tinha um copinho de plástico com café em uma das mãos e andava olhando para frente, muito concentrado em soprar o líquido quente e fumegante. Não vestia coldre, nem sorriso ou olhar entediados. Eu vi os olhos dele, por um segundo, através da fumaça do café, e novamente o achei encantador. Não uso muito a palavra “encantador”, mas foi exatamente isso. Quando ele me passou olhei para trás para ver, como os operários fazem quando uma moça passa pela construção. Ele era alto, não tinha reparado da primeira vez por ele estar sentando. Se mexia com certa preguiça, arrastando as solas do sapato nos degraus da delegacia.

Depois disso eu passei a sempre olhar para dentro da Delegacia quando passava por lá, uma vã e irreprimível esperança de vê-lo fazia com que os meus olhos se virassem na direção do vidro, do balcão. Se ele estivesse lá, nos fundos, onde ele fica, eu não o veria. Sempre tinha certeza que ele estava lá e era por isso que eu olhava, mesmo que não pudesse vê-lo. Outro dia mesmo passei lá, revirando o pescoço para enxergar o interior da D.P. E o vi. Ele estava na ali fora mesmo, encostado no retângulo de concreto que emoldura a porta. Fumava um cigarro, filtro amarelo; saiu pra fumar. E dessa vez ele me olhou mesmo, cerrou as sobrancelhas, talvez porque a fumaça houvesse entrado no cinza, ou talvez porque estivesse fazendo um esforço para me reconhecer. Meu olhar deve ter sido estranho, tão concentrado no dele; mas foi isso. Eu continuei andando, afinal de contas o que eu vou falar para ele, afinal de contas, o que ele vai falar para mim? Não vestia coldre, será que eu imaginei o coldre da primeira vez? O coldre era do personagem, será que era dele também? Queria vê-lo vestindo o coldre de novo.

Quem sabe, outro dia, talvez uma quarta-feira.

(...

J.