23.5.05

A Noite Algo Veio

À noite algo veio,
esguio e negro,
saquear a sua alma.
À noite algo veio,
com o intuito verdadeiro
de interromper toda essa calma.
Interromper o cansaço
pulsante do seu coração partido,
Interromper a cólica
Da sua cabeça vazia.

À noite algo veio,
Crescer com a sua fraqueza,
se amarrar delicado nas suas veias,
atar gentilmente os seus pulsos.
À noite algo veio,
como as legendas de um filme mudo,
Com a força de uma meia lua crescente
Vista ainda durante o dia.

À noite algo veio
Um suspiro entalado entre os seios
Um soluço desfeito de clarinete.
Não há nada de novo sob o sol
Nem sobre
Aquela noite algo veio,
Trajando um véu a ser erguido,
vestindo um sorriso sem dentes
largo e profano.

À noite algo veio
Com um perfume enferrujado
de naftalina e jasmins.
Como o cheiro das túnicas
Dos anjos granito dos cemitério.
À noite algo veio
para morrer com uma lápide sem nome,
para virar uma página em branco,
para te carregar de volta
Para o lugar da onde o sol veio.

À noite algo veio
vestindo uma coroa de flores mortas,
Com a pele fina e transparente
Coberta pelos retalhos
de mil promessas partidas.
À noite algo veio
Com o abandono da noite dos amantes
Com algo de afiado oculto sob a manga
Com o ar das últimas palavras
dos poetas que te cultivaram com amor.

À noite algo veio,
surgiu no canto do seu olho
As pálpebras são curtas demais -
Sempre entra um resto de luz
sujo, filtrado,
por essas visões turvas.
À noite algo veio,
silencioso e fluido,
escorreu pelo seu pescoço
Contra a sua garganta estreita.
À noite algo veio,
te salvar de você mesma
A noite algo veio,
apagar as velas e por a mesa
para um jantar servido frio.

Bela era a noite
Em que algo veio
E tarde chegou o dia
em que algo partiria.

J.