18.12.07

Beautiful Texugo


Queria não me enxergar
Nos seus olhos,
Vê-los pelo que são,
Catalogar as cores,
(dar-lhes nomes)
Tons, semitons, entre tons.

All I see is the look of love
Looking back at
me.

Beautiful texugo,
O triste negar do olhar,
Mapear a constelação
De acidentes nas suas costas,
Ligar pontos, beautiful texugo.

All I see is the look of love
Looking back at
me.

O soluço infantil ao telefone,
Belíssimo espécime.
A dor aceita e partilhada -
Pão de sal, pão de sal, pão de sal.
Belo Badger, Belo Badger,
Não faz mal, não faz mal.

Eu dei sorte, eu fiz
As escolhas erradas.
Tudo para me trazer aqui
E ser feliz aqui,
E ficar aqui,
Ficar aqui.

All I see is the look of love
Staring back at
me.

Eu tive a grande sacada,
Olhei pela janela
E estudei, lentamente,
A engenharia dos seus desejos.
Tudo para construir
A ponte perfeita entre corpos,
A ponte perfeita
Da doçura que vale a pena
A doce justificativa
De todos os clichês.

Beautiful Texugo, Belo Badger,
Eu dei a sorte de te querer.

19.11.07

Exílio

Existe algo de triste e confortável na constelação de coisinhas que eu faço acontecer no tédio que antecede a chegada do sono. Eu como alguma coisa, eu assisto televisão para não pensar em nenhuma de todas as coisas em que eu tenho que pensar. Sinto desejo de fumar um charuto. Toco violão. Leio um pouco. Me forço a escrever.

Hoje é dia 15 de novembro, penso no desgosto de Pedro D’Alcântara, prestes a embarcar para o exílio. No espaço entre as estrelas da minha constelação de coisinhas a palavra “exílio” respira. Ela me persegue, faz algumas semanas, com as palmeiras e os sabiás daquele poema que o meu pai me leu na mesa de um restaurante, já fazem muitos anos. Gonçalves Dias tem a história mais triste: Morreu no naufrágio do barco que o trazia de volta à pátria.

Eu nego o nome da minha solidão. Dou-lhe novas alcunhas: “descanso”, “tédio”, “fracasso”. Não quero sair e encarar o mundo nesse dia chuvoso, porém tão pouco quero ficar só. Quero que o mundo todo venha para onde já estou, silencioso, calmo, respeitoso. Quero alguém que vele o meu sono. A voluntariedade do meu exílio não nega o seu significado. A minha vontade de ser só não nega a minha solidão. Eu nego e pago, cabeça erguida e olhos baixos, eu nego e pago.

Esquecer é preciso.

Esquecer é impossível.
Como esquecer a pessoa amada em 5 minutos

“Es tan corto el amor, y es tan largo el olvido” – Pablo Neruda

Idéia para performance - e idéias em geral.

Esse não é exatamente o exercício do esquecimento – está mais para o exercício do desapego. O esquecimento nada é além da mais extrema forma de desapego, o desapegar-se das próprias memórias. É o agonizante construir da ponte que te leva à outra margem desconhecida.

Esquecer é preciso, esquecer é impossível. Podemos, no máximo, deixar para trás, abandonar. Você pode se convencer da necessidade básica de deixar algo para trás, porém esquecer está além do seu alcance. Você pode apenas não pegar o telefone, não olhar as fotos, não ouvir a canção.

Mas eu ouço uma canção agora, uma canção para mim nova – “Donde Habita El Olvido”, de Joaquín Sabina. Não me interessa tanto saber onde mora o esquecimento (no fundo da garrafa? Na gaveta para a qual se perdeu a chave?), mas qual o caminho mais curto para se chegar lá.

Em um poste, sob o resultado do jogo do bicho, eu vejo um cartaz que promete: “Trago a Pessoa Amada Em 4 Dias”. A promessa está espalhada por toda a cidade. Às vezes é entregue em mãos, às vezes pintada em muros. Já fiquei tentada a procurar uma das mães-de-santo autoras da expectativa de dádiva. Nunca fui, pois meu desejo não era o recomeço, e sim a obliteração de um sentimento ligado a uma pessoa. A possibilidade de redirecionar o amor; dar-lhe outros olhos, outros lábios, outro corpo. O desejo de não desejar talvez seja o mais impotente e aflitivo de todos os desejos.

E talvez a feitiçaria seja a solução. O encanto para quebrar o encanto, um despacho para despachar um sentimento. Crio o meu ritual – é uma espécie de “macumba”, um tipo de sangria, expurgamento com método e finalidade – eu sei exatamente o que eu quero tirar de mim. Não gosto de usar a palavra catarse - talvez por mera implicância (tantas performances se dizem catárticas), mas também pelo fato do meu feitiço ser muito específico, muito bem planejado.

A performance acontece em uma encruzilhada pela força mística desse tipo de lugar – e uma referência aos despachos de Umbanda, que são uma forma de feitiçaria viva nas ruas e no imaginário popular. Penso em Robert Johnson, que vendeu a alma em uma encruzilhada. Me parece um lugar perigoso.

A bandeja prateada é, para mim, uma referência à princesa Salomé, que matou o que ela desejava por não poder possuí-lo. Os objetos que são, um de cada vez, depositados sobre ela, tem significados pessoais, mas relacionáveis – o buquê de rosas vermelhas (o presente do amante), as cartas de amor rasgadas (ridículas, como todas as cartas de amor), fotografias (a alma roubada), um chumaço das pontas do meu cabelo (jogar fora as pontas mortas), sangue (que eu pensei em derramar por desespero). Ex-votos do desejo de não mais desejar. Sobre tudo isso será derramado um vidro de perfume, que será o combustível para as chamas que irão consumar os objetos e, metaforicamente, purgar o sentimento.

Previamente a realização da performance, serão distribuídas filipetas que anunciaram o local e a hora do acontecimento. No verso desse panfleto estarão as instruções que devem ser seguidas para a realização do ritual. A minha performance pode ser vista como uma demonstração prática do método, e não só uma manifestação pessoal, pois o fato do ritual seguir uma “receita” prática permite que ele seja executado por outras pessoas, em outros momentos.

A meu ver, a atitude de por em um lugar público algo extremamente privado gera a possibilidade de reconhecimento e validação do sentimento. Vejo a performance como canção, pelas possibilidades de comunicação emotivas que são extremamente poderosas na forma de melodia, ritmo, harmonia e letra. O cantar sobre o que é de si e dos outros para os outros – a consagração da universalidade do sentimento e da arte como veículo da emoção, das coisas que acontecem entre o púbis e a garganta.

4.11.07

Beggars

You should not come here,
you should not be here -
For you chose to come,
and beggars can't be choosers.

You may cry,
you may grovel,crawl,
pleadand and
plea, plea, plea

.He's kind today.
He'll let you choose
What you'll beg for.

25.10.07

Alguém traiu alguém,
um sino tocou porque
alguém traiu alguém
um sino tocou porque

Alguém amou alguém
E alguém precisou morrer.

20.10.07

Hoje, em um bar no Jardim Botânico, eu falei para um amigo estrangeiro sobre as belezas de Manuel Bandeira. Em um afã eu recitei um poema do Bandeira, o único poema que eu sei de cor, "Desencanto":

Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.

Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.

E nestes versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.

– Eu faço versos como quem morre.

(Manuel Bandeira – A Cinza das Horas – Teresópolis, 1912)

Eu li esse poema pela primeira vez quando eu tinha 12 anos - li no Estrela da Vida Inteira, um livro de capa púrpura que me acompanhou pelo resto da vida. Li, reli e decorei, sem querer, querendo.

Hoje, chegando em casa depois do bar, senti a nostalgia de ler Bandeira. E li Bandeira, e resolvi ler sobre o Bandeira. Não li nada que eu não soubesse, apenas uma coisa - a data de sua morte. Ele morreu 18 de Outubro, ontem. Fiquei meio pasmada, porque é a data do aniversário da minha irmã, e senti novamente o afã que me invadiu na mesa de bar e que me fez ler e reler esse poema.

Quando eu li o poema, aos doze anos de idade, eu começei a escrever. Talvez tenha sido no dia seguinte, talvez nas horas seguintes, talvez uma semana depois. Mas ali eu começei a escrever.

J.

19.10.07

Fidos

A fé é a lâmpada mágica
Que ainda não foi esfregada.

(Se fosse verdade te cegaria
Mas a idéia não é essa.)

De fato tudo
Se resume ao Amem -

Fiat.

"Algum tipo de esperança
Fabricada pelo homem",
Mas se te impede
De por uma bala na cabeça
Está valendo a pena.

3.10.07

Cien Años de Soledad

"Había perdido en la espera la fuerza de los muslos, la dureza de los senos, el hábito de la ternura, pero convervaba intacta la locura del corazón."

Foda, né?

25.9.07

Catumbi

Eu viajo:
malas feitas,
postes passam.
E o doce balanço
da estrada repete:

"O mundo não passa
de um enorme Catumbi".

Em terra estrangeira
conto moedas estranhas
e brigo com o idioma local.
No Hilton de Puerto Madero,
no Red Roof Inn de Memphis,
O Mississippi e o De La Plata
Sussurraram a cantiga -

"O mundo não passa
de um enorme Catumbi".

Em Barbacena
eu estou na fila
para ver uma rosa negra.
Encaro a bichinha
pintada de anilina.
E como um raio
me atinge:

"O mundo não passa
de um enorme Catumbi".

Um dia eu dormi no ônibus,
eu perdi o ponto.
O trocador me sacudiu -
Ponto Final!-

Não deu outra:
Catumbi.

21.9.07

El Califa De Laguahara

O último da triologia em espanhol.

Las fronteras de ese reino
Son dictadas por el viento.
Escorpións descansan
Bajo las piedras.

Una gente nerviosa
De jeribeques* tristes
Camina entre las dunas
Mirando el suelo.

Hacia el este existe
Un bosque de lentiscos** desnudos;
Hasta el oeste
Un pozo dónde las cabras se ahojan.
En direccíon al sur
Un gran faro
Y, al norte,
El mar.

El trono del califa encubre
El inconstante jadear*** del reino.
La gente camina,
El faro brilla,
El mar oscila y canta.

El califa duerme.


_____________________________
*jeribeques - trejeitos
**lentiscos- aroeiras
***jadear - arfar

17.9.07

El Emir Del Bueno Amor

Acho que vou fazer uma triologia de poemas em espanhol só com títulos de autoridades do mundo islãmico. Psicodélico, Borgiano, eu sei, mas eu também li as Mil e Uma Noites.

Entre el desierto
Y el más bello espejismo
Encontrábase el palacio.
Allí él fue bautizado
Y recibió su nuevo nombre
De los labios de una mujer.
(La cortesana de un reino partido)

Lo que él quería saber
No lo fue revelado,
Lo que él quería tener
No podía ser poseído.

Se quedó
Bajo las garras de un tigre:
Un flagelo inútil.
El sol cegó sus ojos,
Las escarpas conspiraban.

14.9.07

Cultura Afro é o Escambau

Eu não costumo escrever textos de não-ficção e, como eu não consigo considerar não-ficção como literatura, eu acabo escrevendo como eu falo.

Cultura Afro é o Escambau

“É mais o povinho...”

A nossa auto-depreciação enquanto povo é tão ridícula que nós queremos dar crédito que é nosso aos outros – eu estou cansada do termo “cultura afro”. Em primeiro lugar porque a África não é um país, e sim um continente, e se referir a ela como uma massa cultural única é, no mínimo, estúpido. De quem estamos falando? Dos negros mulçumanos do Sudão? Dos egípcios? Dos iorubas de Benin e da Nigéria?

Existe um forte movimento hoje de qualificar coisas brasileiras, coisas maravilhosas que pertencem ao nosso povo, como uma representação da cultura africana. Samba não é afro-brasileiro. É brasileiro, ponto, foi feito aqui, não chegou pronto. Muitos dos mesmos povos que desembarcaram no Brasil (todos da costa ocidental da África), também chegaram em outros lugares –Cuba, por exemplo. Lá deu mambo e salsa, aqui deu samba. É lógico que o samba não existiria sem os povos negros, mas também não existiria sem os índios (que recebem tão pouco crédito pela nossa cultura), os portugueses, etc. Será que para valorizar uma cor de pele a gente precisa depreciar uma nação inteira? Porque não se diz simplesmente “cultura brasileira”, o que inclui absolutamente todos nós? Isso é só mais um sintoma da legendária baixa-estima do povo brasileiro – a gente prefere dar crédito a um outro continente do que a nós mesmos (“pra ser bom tem que ter vindo de fora”). E, mais uma vez, a merda da teoria da jabuticaba prevalece.

No Brasil nós estamos tão preocupados em categoricamente “gongar” o nosso patrimônio histórico, que nem paramos para ver o que a gente tem de bom, e como é que isso foi feito. A gente tem que estar aplaudindo Pedro I, que brigou com tudo e todos para ficar aqui, nesse país; mas nós dispensamos esse ato que não demonstra nada além de bravura para acreditar que ele tinha interesses escusos. Nós devíamos estar tirando o chapéu para Pedro II, que sofreu para aprender Guarani. Ele precisava saber guarani? Não. Mas a gente prefere descartar ele como um “banana”. Marechal Rondon é outro. O cara passou a vida inteira tentando estabelecer relações pacíficas com diversas tribos, muitas das quais queriam ver ele escalpelado. Zumbi é outro - um herói brasileiro, não um herói africano. Ele nasceu em Pernambuco, né?

A gente muito que melhorar, mas para melhorar é preciso acreditar nesse país – e acreditar nesse país significa valorizar o que veio antes da gente. E o que está aqui agora também. Quem fala mal de funcionário público? Todo mundo. Quem é aquela gente no INCA, no Itamaraty, na Fundação Oswaldo Cruz? Funcionários públicos. Essa gente dá o exemplo diariamente – e quando você chama a atenção para o bom exemplo ele, muito lentamente, se torna o que é esperado. Enquanto depreciar for mais importante que apreciar, as coisas não melhorarão.



13.9.07

Ghost Buster

Saca só: eu baixei um bagulhinho que deixa eu ver quantas visitas ocorreram no meu blog. Eu sai de casa hoje e tinha 1 (eu mesma), voltei e tinham 6. Cadê essa gente que não se manifesta? Pô, bora dar nome aos bois, pueblo!


4.9.07

El derviche del tesoro triste

Abafando no español...

Bílis espesa
Bílis sucia
Bílis negra envenenada
Lo que entra
Ya no cura,

La sangría es necesaria
El cuchillo
Y el cuenco
La sangría es necesaria

Sangre preso,
Sangre lodo,
Él precisa salir
En el hocico
De un lobo,
En la espada
Del visir.

Efendi, efendi,
Yo destruí un sueño:
Mi derviche
Del tesoro triste,
Mi cariño, mi esfinge.

3.9.07

Alergia

Ritualmente nos ajoelhamos para pedir pelo que os outros nem pensam em agradecer. Diariamente. Nos repetimos, nos enfileiramos e caímos de joelhos. Todo lugar é sagrado, toda hora é hora. Na fila da loja de conveniências, nas salas de espera estéreis, entre animais em pânico e almoços de família. O desespero se vale de qualquer cenário.

Nós suamos de fora para dentro. A pele absorve, a pele multiplica e devolve. A minha alergia forma padrões em alto relevo nas minhas coxas; parecem caracteres japoneses. Os dos braços parecem hebraico. Os da anca, árabe. O meu corpo quer falar comigo mas eu não consigo decifrá-lo. Apenas coço e tento apagar os recados. Quem sabe ler o que está escrito na pele do tigre?

Faz mais de quatro anos que eu tenho essa alergia.

A dermatologista me encaminhou, de cara, para um alergista. O alergista fez testes, descobriu só o que eu já sabia. E deu, depois de três consultas, o diagnóstico formal da ignorância médica: “Deve ser psicológico”.

Eu não fui ao psicólogo, apenas aumentei a dose do antialérgico que eu tomo diariamente. Não tem efeitos colaterais, não dá sono. Mas eu imagino se um dia, pelo acúmulo de anos de antialérgicos, eu talvez me torne estéril, ou desenvolva um câncer nos rins.

Psicológico é o cacete. Depois de quatro anos ainda apresento os mesmos sintomas quando desvencilhada do Hixizine. Que estado de espírito ou enquadramento mental sobrevive quatro anos sem alterações? Eu te digo: Nenhum. No parapeito ou no pódio, eu me coço.

Eu desisti e, no processo de desistir, aprendi a viver assim. Calo o meu corpo com dois comprimidos diários. Alguma coisa vive sob a minha pele. Não posso matá-la, mas consigo calá-la diariamente. E isso é bom o bastante para mim.

16.8.07

Fauna de uma fêmea de 22 anos


Outrora toda sorte
de animal estranho e selvagem
vivia dentro dela,
mas uma febre muito alta
os exterminou.

A febre alta se foi
e ela acordou vazia.
Uivos, rugidos, ganidos,
rosnados, trinados,
tudo havia se calado.
Jaguares, lobos, touros,
tigres, águias, coiotes,
cavalos e graúnas,
Todos silenciosos
e extintos.

O corpo ainda quente,
a pele ainda ardia
como uma queimadura de sol;
No leito adoentado
clamou por sua fauna
mas nada recebeu além
de um beijo no olho
e um comprimido.

9.8.07

Na Eminência (título provisório)


Aqui, na presença de olhos pardos, aqui, na eminência de olhos azuis, enfim, na incerteza de olhos que mudam de cor. Ele abrigava, sob os cílios, um segredo inconfessável. Piscava e se desfazia do último reflexo que os olhos contiveram. Pra onde foi? Ele não diz, é segredo de estado de espírito. Os olhos ruminam, regurgitam o que ele já viu; estão fechados.

Em Copacabana faz um frio estrangeiro. No ônibus, no metrô, nos espaços fechados, sentimos o cheiro de mofo e naftalina exalados pelos agasalhos inutilizados há tanto tempo. Todos têm cheiro de gaveta de avó, todos parecem que acabaram de desembarcar de São Paulo. O hálito de mentol do inverno nos transformou em estranhos bem vestidos. O porteiro me confessa que está usando polainas. Eu acho que é um certo exagero, mas considero a possibilidade de estar subestimando o frio que eu sinto. Em casa visto polainas. Faz sentido, já tinha esquecido como era não sentir frio.

Uma vez eu queimei muito a pele, uma vez eu fiquei muito doente com intoxicação alimentar. Eu não lembrava como era ser tocada sem sentir dor, eu não lembrava o que era sentir fome. Quando eu morrer, quando eu não respirar, eu não vou lembrar da falta de ar que eu sentia quando viva.

C. e X. moram em um país estrangeiro onde a moeda é mesma, mas não vale a mesma coisa; onde falam a mesma língua, mas usam as mesmas palavras. Lá não tem mar, tem um monte de coisas. Mas não tem mar.

1.8.07

O da navalha

Doa suas dores
E dói elas sozinho.
Desfiando a navalha
Com dentes de bronze e prata
Quase não sangra
E se sangra
Sangra frio.
Inalou o suor
Doce do cajueiro
E saiu um dia dizendo
Que ia matar um homem.

Despejou uma cana no pâncreas,
Assolou um quarto de hotel.
Rezando ele me jurou
Que era homem de bem –
Tola que sou, tola que sou,
Eu acreditei.

25.7.07

E descobriu-se bela...

O abandono da identidade X uma aceitação da beleza

Sendo maquiada para o olho implacável da câmera, sinto repulsa pelo meu “dia de rainha”. Mãos alheias ao meu corpo, e a unidade que ele representa, me manipulam para tornar minha imagem bela. Minhas sobrancelhas, e todos os meus demais pêlos, são depenados, minha pele arde, sufocada pela quarta camada de reboco cosmético. A chapinha de cerâmica arranca fios e mais fios do meu cabelo a cada nova investida, o curvex besuntado de rímel arranca cílios. Minhas perenes olheiras (fossos, na verdade) são comentadas e batalhadas, a penugem sobre os meus lábios é combatida com medidas drásticas. O secador queima o meu couro cabeludo, o difusor inferniza as minhas orelhas. Minhas unhas são inapropriadas, meus pés são demasiado brutos. Me recomendam que, durante a filmagem, eu não erga os braços para não expor um começo de pêlos sob a axila que não é louvável. Sentada em meu trono, não sinto tristeza, frustração ou raiva. Conforme constroem minha imagem bela o que eu sinto é a minha ausência e um leve enfado.

Terminada a guerra contra os meus defeitos, me vejo no espelho e me descubro bela. É um choque – a realização do meu potencial para uma beleza tão “segura” e controlada me assusta. É uma beleza que não corre riscos, inegável. Esse choque inicial é seguido por um inchaço significativo do ego perante a minha possibilidade de representar essa beleza. Eu não sou essa beleza, eu a represento. “Se eu me maquiar assim, se eliminar tal e tal coisa, se esconder isso e aquilo, seria bela.” Mas, como não faço e não sou assim, me sinto feia – todas as impressões anteriores da minha beleza (numa fotografia em que apareço particularmente bem, na lisonja rasgada de um amante), me parecem falsas. Aquela é a real beleza, pois foi construída metodicamente dessa forma. As minhas construções não são nem tão metódicas, bem realizadas ou totalmente dedicadas.

Aqui, emplastada com quilos de corretivos e atenuantes, represento a beleza, e isso faz eu perceber que não sou bela. Se tenho que a representar, não a sou. Sou uma personagem sem falas, sem motivação além do ser bela. Isso me entedia, me entristece, apesar de uma relutante alegria em abraçar esse papel. Tudo isso é uma espécie de transplante de alma: sou bela, sou outra, sou imagem criada por mãos que não são minhas, por um conceito de beleza que não é meu. A alegria e a tristeza se chocam e eu não sei se estou vestindo um véu, ou se esse véu foi erguido.

11.7.07

Sobre Cindy # 1

Depois de muitas cervejas, numa livre-associação, veio isso.

Eu aprendi a escrever com um cachorro. E eu escrevi como cachorro por muito tempo. E depois como lobo. Lobo foi bom, o prazer de enfiar o focinho na carne morna só pra se aquecer. Jack London.

E depois foi como homem. Rubem Fonseca. Como homem, gozei facíl. Facíl demais.

Depois teve Clarice. E eu cheguei a conclusão que não sabia escrever.

E depois Cindy. E aí eu soube de mim mesma, eu soube escrever como eu. E disso, disso ninguém nunca esquece, e isso eu nunca vou perdoar, e isso eu nem sei como agradecer.

Mas isso é só a besteira. O amor não se manifesta aí. O amor se manifesta no sorriso dos dentes que se olham ao contrário, nas covas que eu vejo entre as narinas, nos dedos magros e ansiosos. Eu te amo.

Essa ave preza pelo amor de outras espécies. Bela, em vôo, belíssima, parada. Amor, amor, amor, tudo isso se declama no silêncio da presença dessa criatura bela, que não mata o que ama. Oh, criatura, meu amor é pequeno, meu amor é singelo, é delicado, meu amor é teu.

Oh, amour, oh, lieb, oh, amor...

oh, love, oh lieb, oh amor...

7.7.07

Sobre as pinturas: O Jardim Da Flor Fatal

“Nunca aceite uma rosa sem espinhos” – Quando uma Mulher Chora


Eu vim das canções. Cheguei ao Jardim da Flor Fatal através delas, de uma canção tão antiga quanto o tempo. Admito ter pegado carona na literatura para chegar mais rápido, pois eu tinha muita pressa. Vim na garupa de Lautreamont, vim guiada pela luz negra de Manuel Bandeira, vim ouvindo Muddy Waters e Nelson Cavaquinho. Na paisagem vi Kentridge, Doig, Edward Gorey, Leonilson e tantos outros.

Eu ouvi em uma canção do Bob Dylan que “behind every beautiful thing, there’s been some kind of pain.” Eu li, num poema do Manuel Bandeira , que a beleza é um conceito, é triste, não por si só, mas pela incerteza e a fragilidade que ela contém. Eu acredito que a beleza e a verdade sejam irmãs, gêmeas idênticas. E talvez a coisa triste por trás da beleza seja a verdade, que nós não podemos tocar, que pertence só a Deus e que, para nós mortais, é incerta e frágil. Mas não há tanto drama nisso, não há drama o bastante para anular a beleza que toda dor reflete. E eu não estou aqui para provar o drama e a dor, nem para negá-los. E, nesse processo, eu também me vejo incapaz de negar a beleza, ou frisá-la. Isso é trabalho de gente que se leva a sério o que, felizmente (ou infelizmente), não é o meu caso.

Eu pesquiso a beleza perigosa, a beleza fatal da flor venenosa que não se contenta em ser apenas bela. Esse jardim não é o das delícias, esse é o jardim das coisas que podem te matar – a peçonha, a tristeza, a dor, a solidão. E eu tenho a sorte de não conhecer a tristeza e a angustia da fome, das grandes desgraças pessoais. As minhas pequenas desgraças pessoais são de cunho romântico, e são elas que aparecem como alegoria de tudo o que é triste.

Mas como eu não me levo a sério, eu preciso avacalhar. Aí entra o papel, aí entra o desenho despretensioso, aí entra o senso de humor sardônico.

O texto se funde com a pintura em diversos momentos, e por diversos motivos. Às vezes uma frase ilustrativa, redundante, que frisa o senso de humor da artista. Os textos também são explorados como recurso visual, traçinhos que compõe a pintura. E o texto também é complemento poético para a pintura desprovida de leveza. Sempre legível apesar de precário. Recomenda-se a leitura.

O resultado de uma pintura que navega entre o expressionismo e o popular que, apesar do pesado conteúdo intelectual, é decifrável ao olho nu e inculto e não requer o filtro das idéias. Eu venho para falar das coisas que existem desde o primeiro jardim, da onde fomos expulsos, a natureza humana que gera toda a beleza e o horror do mundo.

Prefácio do Manual Para Deslumbrados

De simplicidade e de angustia,
Do desejo pelo que nunca pode ser,
Pelo que nunca irá ser,
Pelo que não tem como ser.
Daqui eu parto,
E é aqui que eu termino.

Não é desespero completo
Se você ainda tem o que desejar.

E não é tão complexo,
E é tão triste que chega a ser engraçado.
Essas canções que podem
Ser cômicas às três da tarde,
Quando você tem com o que se distrair;
E que te engolem e te vomitam
Toda molhada de lágrimas,
Na solidão das três da manhã.
Essas são essas canções.

Você não estava lá naquele dia–
(O rabino me disse, ao me ver tão triste, saindo do Shabat:
“Se sempre dá pra ficar pior, o pior nunca acontece.”
Eu olhei pra ele com um misto de rancor e admiração –
Por que como consolo isso é uma merda,
Mas como máxima, não pode ser negada).

Eu não vou me desapegar,
Podem por fogo em todas as minhas coisas.
Eu não sei existir de outro jeito,
Eu não vou me desapegar,
Eu vou continuar sendo a burra,
A babaca que se apega, que ama,
Que não quer que você vá embora.
Amor é medo de perder,
Amor é medo de perder,
Não é desapego, eu repito,
Eu não vou me desapegar.

Wild, wild horses
Couldn’t drag me away.

28.6.07

Mais Declarações Fantásticas

Quem diria, eu, uma escritora de coluna social.

Essas daqui são do dia em que eu e Lili Carabina passamos algumas horas no castelo de Princesa Léeeeeeia mergulhadas na obra de Madonna.

"Não é fácil ser Madonna" - Léia

"A Madonna faz tudo que eu acho que estou fazendo quando estou bêbada" - J.

"É bom ser anfitrião de si mesmo" - Lili Carabina

22.6.07

To Answer a Very Generic Question: What's Wrong With You?

-Alergias
-Insônia
-Não sei assobiar
-Amo todos os homens errados.

19.6.07

1- Vouloir – Julia Debasse

“Velours, je avais attendu
Venes couvrir cette croix
Velours, enfin vennu
Je avais etrê aveugle avec toi”

Sempre sentia subir pela espinha. Sem pressa, uma peça de cada vez, deixa o desejo crescer até ficar insuportável - a rasante do corvo, as asas tocando o vale que divide as minhas costas. O rastilho de pólvora estava ali, no vale, onde os seus dedos se enfiavam para me segurar. O rastilho de pólvora ligava a pélvis até a base da nuca, era muito claro. Morno e circular, os beijos e o movimento dos quadris. Contornos feitos com dedos e línguas.


2- Palhaço – Dalva de Oliveira

“Sei que é doloroso um palhaço
Se afastar do palco por alguém.
Volta que a platéia te reclama,
Sei que choras palhaço,
Por alguém que não te ama.”

Aqui, debaixo dessa lona, montamos o nosso circo. Ali a esquerda ficava a jaula
dos leões, no fundo, o globo da morte. Lá em cima, é claro, ficavam os trapézios e a corda do equilibrista. Eu juro, é verdade, eu não sou louco. Depois do espetáculo eu fui dormir, que nem todos. Isso daqui estava cheio ontem, eu te juro. Crianças, amendoim, pipoca, toda essa coisa.

Depois do espetáculo fomos todos para os nossos trailers, lá no fundo. Eu divido o meu trailer com o encantador de serpentes. Fomos dormir depois de desmontar tudo, exaustos. Acordei essa manhã e vi o meu trailer vazio. Sai e não havia mais nada, só a lona. Foram embora, levaram tudo e me deixaram para trás. Moço, eu juro que tinha um circo aqui, eu juro. Eu sou palhaço mas não sou louco.


3- That’s Life – Frank Sinatra

“That's life, that's what all the people say.
You're riding high in April,
Shot down in May
But I know I'm gonna change that tune,
When I'm back on top, back on top in June.”

Vamos lá, enxugue essas lágrimas, esse não é o pior dia da sua vida. Haverão dias piores, eu te garanto. E quando esses chegarem o passado parecerá completamente inocente. É como aquele rabino me disse uma vez: “se sempre dá pra ficar pior, o pior nunca acontece.” É um consolo que não consola, mas não pode ser negado.

E hoje? Tão feliz em te ver tão feliz. Mas esse não é o melhor dia da sua vida, baby. Haverão dias melhores. O presente sempre desbanca o passado no hall das grandes alegrias e grandes tristezas. O que está aqui agora é sempre o mais real. O mais doloroso e o mais alegre. Não feche o hall. A vida se encarregará de fazer novas colaborações.


4- Everybody Out Of The Water – The Wallflowers

"It ain’t me that you feel
There’s something moving around in here.
Well, that’s blood, that’s tears,
This ain’t warning :
Everybody out of the water.”

Isso não é um treino, isso não é um alarme falso, não dá pra relaxar e gozar. Gozo, só se for alívio. Venha, me dê a mão, nós precisamos sair daqui agora, ainda temos que enfrentar os tubarões e a hipotermia. Não avise os outros, sem pânico, não erga a sua voz. Olhe todas essas pessoas, elas te pisotearam em cinco segundos. Eu sou a voz calma de aeromoça no seu ouvido e até nos sairmos daqui eu repetirei: “Não entre em pânico, não entre em pânico, tudo vai dar certo.” Eu não te prometo sobrevivência, mas te garanto botes infláveis e máscaras de oxigênio despencando no seu colo. Tudo para você acreditar que pode sair daqui vivo.

Eu menti. Faça as suas preces.

5- Sentado À Beira Do Caminho – Erasmo Carlos e Roberto Carlos

"Carros, caminhões, poeira, estrada, tudo, tudo
se confunde em minha frente
minha sombra me acompanha
e vê que eu estou morrendo lentamente"

Beiras de estrada são o Limbo, estão sempre no meio do caminho. Lá dentro não dá pra saber quem está indo ou quem está voltando. Por mais variada que seja a fauna, ficamos todos iguais sob a luz fria que enfeia sem perdão, entre as bugigangas e as lembrancinhas de última hora. Somos todos crianças não batizadas, com a boca cheia de salgado e café requentado. Todo mundo tem que dar cinqüenta centavos para que a ex-puta te entregue um macinho de papel e te deixe usar o banheiro. Lá dentro as mulheres tentam se reconhecer no espelho.

Lá fora é o deserto, o deserto aberto da estrada e dos fumantes desesperados. O último de muitos cigarros, a carência de um punhado de cães sarnentos. Você quer tocá-los, mas tem nojo. É céu, asfalto e nada mais.


6- Who Do You Love - Bo Diddley, Muddy Waters & Little Walker

“I got a tombstone hand and a graveyard mind,
I lived long enough and I ain't scared of dying.
Who do you love? Who do you love? Who do you love?”

Venha aqui, sente no meu colo e me conte, me conte o que você nunca contou pra ninguém. Eu sei quem eu sou, eu sei quem você é, mas o que eu preciso saber, o que eu preciso que você me diga agora mesmo, é quem é que eu sou pra você.

Eu não sou dessas meninas que você encontrou por aí. Eu nunca fui menina. Passei o tempo em que deveria ter sido menina bebendo do copo dos outros. Acordei aos quinze anos com a ressaca de uma vida inteira. Os olhos de uma mulher de quarenta e o coraçãzinho retardado de uma adolescente. Isso pode ser muito perigoso, muito perigoso para mim.

Quem você ama? Em que porto está o seu coração?

Eu fiz construí a minha casa com os ossos de cavalo. As vigas são feitas de espinha de cascavel. Cuidado aqui, limpe bem os pés antes de entrar.


7- Lucky Stars - Mary Gauthier

I'm counting on my lucky stars,
I used to count on you.”

Eu só vi uma estrela cadente em toda a minha vida. Em Minas, enquanto esperava um Lobo Guará que nunca apareceu. Vai ver não era uma estrela cadente, vai ver o meu olho só esticou o brilho de alguma estrela imóvel e vulgar, que não era nem a primeira nem a última da noite. É possível, eu estava bêbada de vinho de jabuticaba. Mas de qualquer forma, eu não soube o que pedir. Nenhum desejo foi tão súbito quanto a estrela. Vai ver eu realmente não precisava de mais nada além daquela garrafa de vinho de jabuticaba. Mas duvido. Acho que depois de tantos santos e cartas de tarô terem negado o meu desejo, não quis gastar a estrela cadente com o que eu já sabia que não podia ter. Então não sobrou nada pra pedir.

Em retrospecto, deveria ter pedido pro Lobo Guará aparecer. Queria muito ver ele.

8- Jezebel - Charles Aznavour

“Jezebel... Jezebel...
Ce démon qui brûlait mon cœur
Cet ange qui séchait mes pleurs
C'était toi, Jezebel, c'était toi.”

Essa foi a bandeja que serviu a cabeça de João Batista, essa da onde Jezebel agora cata um amuse-bouche delicioso.

Jezebel governa um Adão ganancioso. Se ele morre, tem sempre outro na fila. Maridos, filhos, irmãos. A fila anda, comandada pelos olhos de naja de Jezebel. Irmã de Salomé, prima de Dalila, filha de Eva, ex-costela que ainda vive no corpo dos homens. Ela orquestra as guerras movendo os braços com gestos graciosos. Sorrindo, retoca a maquilagem para morrer bonita.

10.6.07

Balada erótica em sol menor.

Mil Beijos

O meu desejo é súbito
Me mata e não morre.
Lúbrico,
Meu corpo me engole.
Nossa volúpia, em pêlo, em brasa,
Por ser tão livre me fiz sua escrava.
Mil beijos não vão me curar...
Mas mesmo assim dever tentar.

Não precisas de súplicas,
Sou a que nunca te nega,
Úmida,
Onde a vida me atravessa.
A lua entra na sala de estar,
Prenha do dia qu'eu quis abortar.
Mil beijos não vão evitar
Qu'eu tente te fazer ficar...

O teu perfume: conhaque e jasmins,
A terra parte e se abre pra mim.
Meu bem, deixa eu me afogar.

O teu amor é dívida
Qu'eu gosto de pagar,
Explícita,
O qu'eu quero eu vou te dar.
Um retalho de luz no seu corpo,
Isso tudo se faz pouco a pouco,
Mil beijos só pra começar,
O que não deve terminar...

Shuffle 5

Talvez o maisraquinho até agora? Ah, foda-se.

1-
New Year’s Day – U2

“Though I want to be with you
Be with you night and day
Nothing changes
On New Year's Day”

Teremos fogos e teremos festa, teremos champanha, cocaína e beijos cheios de areia. E você talvez se alegre, e consiga enxergar quem está ao seu redor, e pare de pensar em quem não está.

Nós vamos te levar para a praia, vamos te botar naquela fila de pessoas vestidas de branco. Elas estão esperando para receber um passe daquela mulher com o turbante que está segurando palmas. Brancas, as palmas e, é claro, o turbante. Talvez depois do passe você consiga nos enxergar e ficar feliz por estarmos aqui. Pare de pensar em quem não está.

Perdemos um dos nossos! – ele se afastou para urinar e não voltou mais. Nós só vamos saber disso amanhã, mas ele dormiu no jardim em frente ao edifício Chopin, se arranhou todo numas plantas espinhentas que tem lá. Você vai estar miserável, de ressaca, mas vai rir disso mesmo assim. “No Chopin?” e vai rir e sentir a cabeça latejar. “No Chopin! Eu acho que vi a Narcisa!”. E todos vão rir como no final de um desenho animado da Liga da Justiça.


2- Dreams – Fleetwood Mac

“Thunder only happens when it's raining
Players only love you when they're playing
Women they will come and they will go
When the rain washes you clean you'll know”


Num dia frio, na solidão do que poderia ter sido, você diz que vai vir bater, com fome e cansado, na minha portinha. Eu não sei como você consegue ir tão livre, sem ter para o que retornar. Eu invejo essa sua liberdade, mesmo sabendo que você não é livre, que o seu medo de perder isso que você chama de liberdade te aprisiona. Você não ficou por esse medo, se deixou carregar por oceanos e desfiladeiros onde nenhuma pomba se esconde. Era que nem aquele meu sonho recorrente, lembra, eu te contei dele, aquele lindo cavalo branco e poderoso que galopava pela estrada reta de asfalto brilhante. E a paisagem se alterava pouco ao seu redor, e era lindo, mas muito agonizante, pois ele não chegava em lugar nenhum. Onde você pretende ir antes de vir bater na minha portinha, meu amor? Lugar nenhum sempre pode te esperar. ( O triste é que eu também.)


3- Clothes Of Sand – Nick Drake

“Clothes of sand have covered your face
Given you meaning taken my place
So make your way on, down to the sea
Something has taken you, so far from me”

O tempo não é meu amigo, aqui o tempo me desconhece. Eu cobri meu rosto para me proteger do vento, eu cobri o rosto para você não poder ouvir o que eu dizia: que essas palavras fiquem aqui, abafadas entre os meus lábios e esse lenço feio.

Eu te vi através dos vitrais da catedral. Um retalho de luz vermelha sobre os seus olhos, um retalho de luz azul sobre os seus lábios. Você foi lá mudar o seu nome, e eu não pude ouvir o seu nome novo. Tinha areia nos meus ouvidos.

O barco está te esperando para zarpar. Centenas de crianças órfãs à bordo. O barco não espera por ninguém, só por você. Eu fui buscar meu lenço branco, para acená-lo em direção aos seus olhos de escotilha marejados. Mas cheguei tarde demais, só vi uma migalha de vapor no horizonte.


4- The Song Is Still Slipping Away – Shooter Jennings

“Your heroes turn out to be assholes
And the light in the tunnel that you're chasing is a train
The singer's in key the guitars in tune
But the song is still slipping away”


Acordei com a canção sob a língua. Ela sumiu, em rewind rápido, e eu a perdi. Fiz um exercício intenso de memória por alguns minutos, mais nada a podia trazer de volta. Derrapou em uma curva na mente, eu ouvi o cantar dos pneus, e voltou para de onde ela veio, onde quer que seja isso.

Ela irá voltar um dia, surpresa, meio esfarrapada, fora do tom, em um murmuro no elevador. E eu terei certeza que ela estava lá o tempo todo, mas fora do meu alcance.


5- Solidão – Cascatinha & Inhana

“Mas quanta ilusão
Tudo é solidão
Ela já morreu
E a brisa sem dó
Apagou no pó
O rastinho seu.”


A culpa que nós não tivemos é o que mais me atormenta e me fere. Na divisão dos bens cada um partiu com o que tinha, o bom e o ruim, claro, óbvio, sem debates. Mas na sala vazia uma sombra se projetava, no assoalho de tábuas largas, ali, a sombra. Olho para o céu como idiota e nada vejo. A sombra era só um significante, sem o significado que a projetasse. E mesmo assim fomos incapazes de simplesmente abandona-la ao próximo inquilino. A sombra da culpa que nós não tivemos paira lá ainda, sob o nosso olhar perplexo que a acha sempre que viramos a cabeça para trás. Está aqui no canto dos meus olhos, embaçando a minha visão periférica.


6- Rap Classe A – MCs Rafa, Galo e Catra

“Formiga de tamanco não sobe parede, não,

E perna de barata não é serrote, meu irmão”.


Por aqui as coisas começam a ficar estranhas depois das duas da manhã, ou entre o quinto e o sétimo baseado, ou entre a quarta e a sexta carreira. Aí a ressaca física começa a aparecer no fundo dos olhos, e a ressaca moral começa a azucrinar, baixinho, no silêncio entre as palavras. Nessa altura do campeonato você já está fodido. Se você for pra casa tentar dormir ou se você continuar a se afundar nas entranhas sujas da noite, tanto faz, já é tarde demais. Se o sol saiu, não vá pra casa.

Ele vira, me passando o isqueiro, e sorri: “Sabe como é que é, agora abraça o capeta e peida.”

3.6.07

Salmo 22

1 Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste? por que estás afastado de me auxiliar, e das palavras do meu bramido?

2 Deus meu, eu clamo de dia, porém tu não me ouves; também de noite, mas não acho sossego.

3 Contudo tu és santo, entronizado sobre os louvores de Israel.

4 Em ti confiaram nossos pais; confiaram, e tu os livraste.

5 A ti clamaram, e foram salvos; em ti confiaram, e não foram confundidos.

6 Mas eu sou verme, e não homem; opróbrio dos homens e desprezado do povo.

7 Todos os que me vêem zombam de mim, arreganham os beiços e meneiam a cabeça, dizendo:

8 Confiou no Senhor; que ele o livre; que ele o salve, pois que nele tem prazer.

9 Mas tu és o que me tiraste da madre; o que me preservaste, estando eu ainda aos seios de minha mãe.

10 Nos teus braços fui lançado desde a madre; tu és o meu Deus desde o ventre de minha mãe.

11 Não te alongues de mim, pois a angústia está perto, e não há quem acuda.

12 Muitos touros me cercam; fortes touros de Basã me rodeiam.

13 Abrem contra mim sua boca, como um leão que despedaça e que ruge.

14 Como água me derramei, e todos os meus ossos se desconjuntaram; o meu coração é como cera, derreteu-se no meio das minhas entranhas.

15 A minha força secou-se como um caco e a língua se me pega ao paladar; tu me puseste no pó da morte.

16 Pois cães me rodeiam; um ajuntamento de malfeitores me cerca; transpassaram-me as mãos e os pés.

17 Posso contar todos os meus ossos. Eles me olham e ficam a mirar-me.

18 Repartem entre si as minhas vestes, e sobre a minha túnica lançam sortes.

19 Mas tu, Senhor, não te alongues de mim; força minha, apressa-te em socorrer-me.

20 Livra-me da espada, e a minha vida do poder do cão.

21 Salva-me da boca do leão, sim, livra-me dos chifres do boi selvagem.

22 Então anunciarei o teu nome aos meus irmãos; louvar-te-ei no meio da congregação.

23 Vós, que temeis ao Senhor, louvai-o; todos vós, filhos de Jacó, glorificai-o; temei-o todos vós, descendência de Israel.

24 Porque não desprezou nem abominou a aflição do aflito, nem dele escondeu o seu rosto; antes, quando ele clamou, o ouviu.

25 De ti vem o meu louvor na grande congregação; pagarei os meus votos perante os que o temem.

26 Os mansos comerão e se fartarão; louvarão ao Senhor os que o buscam. Que o vosso coração viva eternamente!

27 Todos os limites da terra se lembrarão e se converterão ao Senhor, e diante dele adorarão todas as famílias das nações.

28 Porque o domínio é do Senhor, e ele reina sobre as nações.

29 Todos os grandes da terra comerão e adorarão, e todos os que descem ao pó se prostrarão perante ele, os que não podem reter a sua vida.

30 A posteridade o servirá; falar-se-á do Senhor à geração vindoura.

31 Chegarão e anunciarão a justiça dele; a um povo que há de nascer contarão o que ele fez.

29.5.07

Eu fiz a generosa
Eu fiz a louca
Eu fiz a santa
Eu fiz a tola
Eu fiz a surda
Eu fiz a triste
Eu fiz a dócil
Eu fiz a boa
Eu fiz a bonita,
E a apaixonada.

Eu fiz tudo errado.
O Pacto

Nos enganamos impunemente,
Fugimos pela estrada nevada:
Derrapa muito, e é muito perigoso.
Vencemos cada curva como se fosse a última.
Chegamos à costa,
Ainda fazia muito frio
E os meus lábios estavam muito feridos.

Não achamos consolo no mar,
Só o vento frio e salgado
Que aumentou o estrago
e enferrujou as fechaduras das portas.
Ficamos presos num quarto,
Por noites a fim ouvimos
os cascos reluzentes de um cavalo.

Novamente fugimos, impunes,
A neve havia derretido.
Chapinhando pela lama
Renovamos nossos votos
E fizemos promessas sinceras.
Mais nenhuma palavra foi dita.

28.5.07

O povo que não recebeu o memorando.

Existem algumas pessoas em certos cargos ou profissões que, aparentemente, faltaram no primeiro dia de trabalho, ou não receberam o memorando que apresentava a elas os deveres e a idéia geral por trás do que elas estão fazendo. Essas pessoas não são necessariamente maus empregados, eles simplesmente não entenderam.


Porteiroso cara do prédio da minha mãe acaba comigo. Ele está lá há alguns meses, e ainda não entendeu. Na verdade, eu suspeito que ele tenha escolhido a carreira errada. O sujeito fica lá, sentado entre o portão e a porta. Ele arrastou uma cadeira para segurar a porta inclusive, que é pra ele não ter que abrir ela e se focar inteiramente no portão. Sem problemas, eu não sou uma pessoa que escolhe a estética contra a praticidade. Eu não sei o que está acontecendo com aquele cara: vai ver ele e está fazendo algum treinamento telepático, está tentando aprender a abrir o portão com o poder do pensamento. O fato é que ele nunca, jamais, se levanta para abri-lo. E esse não é um desses portões eletrônicos, controle remoto. Alguém realmente precisa enfiar uma chave, girar e puxar. Ele não se comove com o fato de você estar carregando três sacos de supermercado, ou uma bicicleta. O homem está lá, tal qual uma montanha, irremovível, encarando o portão. Eu acho que ele nasceu pra ser recepcionista de elevador. Está na cara. Ele tentou a coisa mais perto que tinha, porteiro, mas tem essa inconveniência de ter que se levantar. Mas nada disso vai impedir que ele viva o seu sonho de ser recepcionista. A fé pode até mover montanhas, mas não move aquele homem.

Seguranças O sujeito contrata o segurança. Diz pra ele “O negócio é o seguinte, Átila, você tem que manter tudo por aqui em paz, não deixar ninguém incomodar ninguém, evitar que as pessoas se batam.”. É isso aí. E eu imagino que, em um dia particularmente pacífico, o trabalho de Átila seja meio frustrante. Afinal de contas, se a paz reina sem a sua interferência, ele realmente não está fazendo o trabalho dele. Então o que ele faz? Ele cria uma situação em que os seus dotes físicos sejam necessários. Ele compra uma briga. O que Átila não entendeu foi o conceito de só fazer alguma coisa quando alguma coisa for necessária. Ele não entendeu que se está tudo bem, ele realmente não deve fazer nada, apenas estar preparado para alguma eventualidade mais violenta – que essa também é uma forma de estar cumprindo com as suas obrigações. Ele é o oposto do porteiro da casa da minha mãe – ele não é um empregado ruim, ele dedicado demais.

Taxistas:

Eu: Boa tarde...Eu vou lá pra Lagoa, mmm..Como é que eu vou te explicar? O senhor sabe onde fica o CAP?

Ele: O CAP? Claro, claro.

Eu: Ótimo, eu vou para um prédio do lado do CAP.

Ele: Tem uma Igreja ali perto, né?

Eu: É, tem sim.


(Começamos a rodar – eu estou ouvindo o meu Ipod e não estou prestando muita atenção. O carro para. Eu olho pra fora e vejo o prédio da Obra do Berço.)

Ele: Chegamos. Deu onze reais.

(Eu olho pra fora com um olhar de que porra é essa. Eu olho o prédio da Obra do Berço, eu penso nas iniciais. ODB. Eu queria ir pro CAP. Eu repasso a conversa que eu tive com o meu amigo ali. Sim, eu tenho certeza que eu pedi pra ir pro CAP.)

Eu: Chefe, isso daqui não é o CAP. É a Obra do Berço.

Ele: Como assim? Aqui é o CAP. Olha a igreja ali.

Eu: Não. O CAP é uma escola. Isso daqui não é uma escola. Isso daqui é a Obra do Berço. Na verdade, está longe do CAP.

Ele: Minha senhora, não é minha culpa. Você não me deu um endereço, como é que você quer que eu te leve para algum lugar se eu não tenho um endereço?

Eu: Meu amigo, eu entro aqui... Eu te pergunto: você sabe onde é o CAP? Você me diz que SIM. A partir daí eu estou ACHANDO que você SABE pra onde você está indo.

Ele: Olha só, eu não tenho obrigação de saber onde é que fica o CAP.

Eu: MEU AMIGO, é CLARO que você não têm obrigação de saber onde fica o CAP, mas você tem a OBRIGAÇÃO de admitir se você não sabe onde é, JUSTAMENTE por que saber onde é NÃO é sua obrigação, entendeu?

Ele: Mas ta aí a igreja.

Eu: Nós estamos no maior país católico do mundo, porra! Tem uma igreja em TODA esquina!

(Eu dou o endereço pro maluco. Voltamos a ir, dessa vez, na direção certa)

Ele: A senhora pode ficar achando que eu sou desonesto. Só por que você não me deu o endereço eu agora passo por safado.

Eu: Me desculpa, mas puta que o pariu, meu amigo. Você não pode e não vai me culpar por você não saber onde é o CAP e DIZER que sabe. Tu diz que sabe, eu acredito. Se você fosse honesto, no mais verdadeiro sentido dessa palavra, você teria admitido a sua ignorância.

Ele: A senhora ta me chamando de ignorante?????

Eu: *suspiro* - Não, cara, não.

(Chegamos depois de um silêncio eterno)

Ele: Dezesseis reais. (o filho da puta não me deu nem um desconto)

Eu: Olha só, meu amigo, para futura referência, quando tu não souber onde fica um lugar, DIGA, cacete, DIGA, peça um endereço se tu não conhece a referência dada, tá bom??? Cacete. E, por falar nisso, ALI A IGREJA , Ó!

(saio, bato a porta).