10.6.06

Shuffle – Livre associação de palavras cantadas a palavras escritas

Funciona assim - eu sento aqui e abro minha play list no shuffle. As músicas tocam aleatoriamente e eu vou escrevendo qualquer coisa que vem a mente quando ouço uma canção em particular. Depois escolho um verso que ficou.

1. “Either I’m too sensitive, or else I’m gettin’ soft” – Bob Dylan – If You See Her Say Hello

Quando as coisas não dão certo? As coisas às vezes não dão certo exatamente por darem certo – mas só por algum tempo. Esse é talvez o pior tipo de decepção, a das coisas que terminam, das coisas que morrem antes de você desistir delas. E mais cruel são as coisas que desistem de nós antes de nós desistirmos delas. A gente se prepara a vida inteira para uma coisa só pra descobrir, quando chega a hora, que nós nunca estivemos tão despreparados.

2.“And looking down on everything,
I crashed into his arms
Amelia, it was just a false alarm.” – Joni Mitchell - Amelia

Descrever um círculo perfeito no céu; fumaça se desfaz mais rápido que as palavras. Essas perduram, essas ecoam, essas vão embora e deixam resíduos de memórias que nós criamos para elas. Uma fábula para cada sílaba, dicionários de piadas particulares. Sinestesias absurdas entre pavões e os azulejos turquesa do assoalho da casa da sua avó materna. Mas quando toca o alarme, quando se acorda, tudo tem um significado mais doloroso. O ditado libanês diz uma das maiores verdades: o coração sempre espera o que o coração deseja. Você pode se convencer das verdades mais óbvias, mas aquele bichinho aflito e pulsante sempre espera o que ele deseja, como as crianças fazem. Toda a realidade do mundo não convence o coração – e se convencesse ele não teria mais o que esperar. Aí nem vale a pena viver.

3. “Pobre Rosinha de Chica
Que era bonita
Agora parece
Que endoideceu
Vive na beira da praia

Olhando pras ondas
Andando rondando
Dizendo baixinho
Morreu, morreu” – Dorival Caymmi – O Mar

Pergunte para os caboclos mais velhos, eles lembram como era bela, ela mesma, aquela velha desgrenhada que agora assusta as crianças. Dona Rosa já foi Rosinha, e não era doida. Agora anda partida, algo quebrou lá dentro, deu pra ouvir o estalo seco quando ela viu o corpo dele todo roído de peixe, embolado na rede. Ainda espera o mar devolver alguma coisa que é dela, mesmo que já tenho cospido pra areia o corpo dele. Olha nos olhos dela quando ela passar, não tem ninguém lá dentro. Já viu um olho vazio? Vê os olhos dela, tem ninguém lá dentro, não. Vai ver que está esperando o mar cuspir ela, ou talvez um vestido novo, esses frangalhos de xita que ela veste agora...Vê, esse vestido era o mesmo que ela usava no dia. Só sobrou a roupa do corpo, não tem mais nada em Dona Rosa.

4. “Depois da curva da estrada
Tem um pé de áraçá
Sinto vir água nos olhos
Toda vez que passo lá”
– Renato Teixeira – Amora

A sombra do homem não se punha contra o muro, mas fazia escuro um pedaço do chão empoeirado, um retalho da sua forma expandida. Sempre passava aquela hora. A curva era larga para uma estrada tão estreita, mas a sombra do homem respeitava o limite do muro – nunca o escurecia. Talvez ficasse mais belo caso isso acontecece – era horrível. o amarelo que haviam escolhido para aquele muro. Era branco antes, era branco e continuaria branco caso algum moleque não tivesse escrito algumas profanidades alí. Aí pintaram de amarelo, para esconder. Não sabia-se quem era o homem, mas passava alí todo dia. Sabia-se para onde ele ia – pra venda - mas ninguém sabia de onde vinha. A sombra sempre projetada a frente dele não dava pistas.


5. "Women do know how to carry on
Well, there won't be too much cryin' time alone
They'll be right back puttin' red and makeup on
Women do know how to carry on" Waylon Jennings – Women Do Know How To Carry On

Ela tropeçou, mas não caiu. Ela caiu, mas jamais tocou o chão. O orgulho sustentou a queda, nada se partiu, todos os ossos intactos e fortes, como os ossos devem ser. Na beira de estrada onde ela foi abandonada, no posto de gasolina onde foi deixada para trás, ela achou um espelho – no banheiro. Viu sua imagem refletida naquele cômodo que fedia a cerveja velha e mijo fresco. Soltou os cabelos, passou o único batom que tinha como se ele o tivesse escolhido entre outros cem, limpou o rímel borrado sob seus cílios inferiores que contribuíam tanto para aquele semblante cansado que ela agora tentava esconder. Usou o batom como blush, usou a maquiagem como armadura. Se vestiu, como se antes estivesse nua. Esticou-se toda e saiu pisando forte – você jamais saberia, mas a cada passo pedia a Deus que o salto, já bambo, já gasto, não quebrasse.

6. “Well I woke up Sunday morning,
With no way to hold my head that didn't hurt.
And the beer I had for breakfast wasn't bad,
So I had one more for dessert.” Kris Kristofferson – Sunday Morning Coming Down



Não lembrava de nada. Quem havia sido ele na noite anterior? O marinheiro eufórico que acaba de desembarcar em um porto festivo ou uma puta carente disposta a trabalhar de graça? Não lembrava de nada e isso o incomodava – pediu perdão a Deus, de joelhos e tudo. Sempre se arrependia do que não lembrava, sempre queria ser perdoado por isso. Na boca aquele gosto, a língua áspera, como se tivesse lambido a sola de um sapato, como se tivesse mastigado e engolido um charuto. Graças a Deus pela culpa, se tirassem dele a culpa não sobraria nada além de um buraco largo e negro. A culpa era larga e negra, mas não era profunda – tinha matéria, era real, tinha uma palavra só para ela. Havia mais uma vez se debruçado sobre a noite e a noite havia sido generosa. Ajeitou o cabelo do melhor maneira possível, e a melhor maneira possível era muito ruim. Tropeçou para fora do quarto. Domingo é dia de arrependimento, domingo é dia de comunhão. Quem vai a missa de ajoelha e reza, quem fica em casa de ressaca se ajoelha e vomita. É culpa nos dois, era só culpa e uma dor de cabeça filha da puta. Nem era mais culpa, era um arrependimento vago de uma vida inteira. Domingo – antes de tudo e depois de muito. O novo começo da mesma velha merda.

7. “Just take this longing from my tongue
Whatever lonely things this hands have done
Let me see your beauty broken down
Like you would do for the one you love.”
Leonard Cohen – Take This Longing

Ela se vestia na frente do espelho por que podia ver, sem que ele notasse, ele a observando. Gostava de se sentir observada por ele e o via tão deslocado e solitário no enquadramento do espelho enquanto vestia as calcinhas. Os olhos dele não procuravam os dela no espelho, se fixavam em suas ancas largas, descendo pelas pernas e descansando na parte de trás dos joelhos que ele beijara antes. Ver ela se vestir era quase tão excitante quanto havia sido vê-la tirar aquelas roupas que agora retornavam ao seu pequeno corpo. Ela sabia, ela gostava, mas nunca diria. A maior graça daquele jogo era o de fingir que ela estava longe dele, fingir que ela estava se concentrando em por aquelas roupas. Fazia de tudo um ato erótico, botava o sutiã por último. Se achava tão estranha, com as pernas cobertas pelo jeans e os seios livres. Os homens as vezes não vestem camisa, como ela estava agora, só de jeans. Ficava assim por pouco tempo, não gostava de como aquilo a fazia se sentir tão masculina. Segurava as peças com delicadeza e até o desequilíbrio na hora de botar o jeans era calculado. Achava charmosa uma leve tropeçada. Ele sorria sem mostrar os dentes.

J.
Desabar

As cidades invisíveis
Que aqui erguemos,
suspensas no ar.
Tijolos desproporcionais.
Quão reais se tornam,

quando as paredes arfam
E desabam sobre nós.

J.
Caminho

poema levemente depressivo do ano passado (foi um ano levemente depressivo).

Caminho.
Mãos no bolso
Ruínas de fábricas nuas
O céu desbotado da noite suja.

Esse espaço,
Entre o peito e a garganta,
Esse ventre oco,
Essa voz que sangra.

Mas caminho.
Mãos arranham
Até chegar ao útero,
Preencher o espaço inútil
Com aquele calor
Que me foi negado
Numa noite suja,
Sob o céu desbotado.

J.


Show no Baratos da Ribeiro (histórica volta do Vespeiro - evêeeento que reuni bandas novas para apresentações) no dia 3 de junho - rolou no formato acústico, só eu no violão e Diab na guitarra - o amp dele, o maravilhoso Rivera valvulado, ali atrás de mim. Um dia depois do meu aniversário - meu primeiro show com 21 anos.

J.

9.6.06

O Lado Negro Do Slogan


Toda mulher conhece o misto de descrença e antipatia que as palavras “posso te conhecer, gata?” causam quando proferidas a três centímetros da sua cara pelos lábios de um sujeito que, ao proferi-las, torna-se irremediavelmente indesejável. Tá bom, não é toda mulher, mas eu em particular atraio esse tipo de cretino e sinto raiva por mim e por todo o meu sexo.
A manobra é freqüentemente acompanhada por outro pedido patético, o de “dar dois beijinhos”. Dois beijinhos na face logo se tornam uma possibilidade de contaminação de herpes quando o infeliz em questão abre a boca na direção da sua e põe metade da língua pra fora. Esses homens desenvolveram uma falha curiosa nos seus aparelhos auditivos (ou talvez seja só um sintoma da “cara de pau” galopante – qualquer perito em acústica sabe que a madeira reflete o som) que evita que eles escutem o som do mais retumbante “NÃO”. É fato que todos os homens sofrem de audição seletiva, mas esse grupo em particular evoluiu (ou regrediu, não sei como isso fica no contexto Darwiniano) e criou imunidade a qualquer negativa.
Ao empurrar o sujeito para afastar a língua e todo o resto atrelado a ela, eles usam uma estratégia de inversão de papeis surpreendentemente inteligente – se fazem de rogados, ofendidos pela recusa (que, veja bem, foi registrada através do empurrão, e não pela negativa oral) e interpretam, com desenvoltura muito convincente, o papel de vítima inofensiva: “Pô, gata, só quero te conhecer!”.
Era nessa exata situação em que eu me encontrava: sendo acusada de grosseria e falta de respeito por um sujeito que, a menos de um minuto atrás, tentava enfiar a língua dele na minha boca enquanto me pressionava contra o corrimão de ferro da escada da Fundição Progresso, onde eu havia sido encurralada. Eu, babaca que eu sou, tentei me explicar e me defender da acusação e, mais uma vez, ele repetiu a manobra do começo, a partir do “gata, só quero te conhecer.”
Uma amiga minha observava de longe a cena e o seu desenrolar repetitivo: ele atacava, eu empurrava, ele acusava, eu me defendia, ele atacava, etc...Mas graças a Deus minha amiga não é tão babaca quanto eu e tinha pressa em sair dali. Bateu no ombro do sujeito, que se virou para ver do que se tratava. Mandou na lata: seca, direta.

“Sabe qual é o seu problema? Você é brasileiro e não desiste nunca.”

O caboclo perplexo ficou encarando ela, o que me deu a chance de sair correndo da escada e me juntar aos meus amigos que, a essa altura, se mijavam de rir.



J.