16.8.06

Estrela Perdigueira


Segui a estrela perdigueira. Tropecei em uma pedra oca no caminho. As mãos antecederam o resto do corpo, contra o cascalho, contra a areia grossa, salina. Ferida nas palmas, pensei em Cristo, pensei nos buracos nas mãos da estátua na casa da minha avó. Não eram chagas, as minhas, não foram anunciadas por anjos, não ganhei pão, vinho ou um beijo. Pensei nas medalhas que eu te dei – São Cristóvão, para te guiar em segurança, e São Sebastião, para te lembrar do porto dessa sua amante. Às vezes penso se você ainda as usa, se o pedaço de couro que as prendia ao redor do seu pescoço largo ainda tem aquele cheiro de cachorro molhado, ou o cheiro do seu suor. Não gostei quando você mudou a loção pós barba, gostava mais da outra.

Nunca te disse isso.

Segui a estrela perdigueira. Quando eu era criança, depois de um sonho ruim, fugia para a cama dos meus pais e fingia dormir – tinha vergonha de ser encontrada ali, por isso fingia dormir. Me carregavam de volta para o meu leito original, achavam que eu dormia. Ficava tristinha, tristinha quando abria os olhos e me via normalmente no meu quarto, ouvindo o ressonar dos meus irmãos. Minha mãe tinha uma cadeira no quarto, onde ela empilhava toda a roupa suja. Depois eu passei a dormir lá, coberta pelas roupas sujas. Fazia sempre muito frio no quarto, o ar-condicionado no máximo. Sentia muito frio, mas eu me sentia bem, lutando contra o frio com aquele cheiro morno e familiar, aquilo era mais forte que o frio. Minha mãe ouvia o barulho da cadeira, fazia muito barulho, a cadeira. Passou a botar as roupas sujas no cesto de plástico do banheiro do quarto deles. E agora era pra lá que eu ia nas noites de sonho ruins – entre as roupas sujas, num berço de plástico no chão do banheiro.

Lá não me achavam e lá eu achava eles.

Segui a estrela perdigueira. Estava escura aquela noite, eu lembro, ver você dirigindo. Adorava ver você dirigir. Queria ter a coragem de baixar minha cabeça no seu colo e chupar o seu pau, como eu vi tantas mulheres fazendo nos filmes. Uma vez eu tentei, baixei a cabeça, tímida, insegura. Eu era tão nova. Você passou a mão pelos meus cabelos e ergueu o meu queixo, os olhos vagueando pelas sombras no meu rosto por alguns segundos. Você riu e me beijou, eu ri e fui beijada. Não éramos como os homens e as mulheres do filme – você não conseguia ser chupado enquanto dirigia e eu não tinha coragem de tomar liberdades tão extravagantes com a minha libido. Às vezes, quando trepo sem afeto, quando encaro a trepada como performance benéfica ao ego, te imagino em um canto escuro me dirigindo. Você é o meu diretor de filme pornô, eu sou a atriz tentando implorar por um favor enquanto manejo uma pica alienada entre os meus lábios.

No fundo, no fundo, eu nasci para amar Humphrey Bogart.

Segui a estrela perdigueira. Vestia as botas do couro de um boi bravo que montei em uma vaquejada em Sergipe. Sangramos a besta, um corte único no pescoço, misturamos o sangue com o leite e bebemos. Era um sábado de Aleluia. Posso estar enganada, mas eu normalmente não me engano durante os sábados de Aleluia. Os índios todos estranhavam os meus olhos árabes, como eu era estranha para eles! Penas, fuligem e névoa, esse é o meu novo look, acho bom você ir se acostumando. Às vezes eu gostaria de sentir raiva de você, às vezes eu só gostaria de te amar menos, às vezes eu acho que os dois são a mesma coisa. Eu, uma beira de estrada da Andaluzia - te amaldiçoei contra os céus, um punho cerrado, o outro segurando o meu sapato para que Deus visse a sola que apenas arranhou o chão que Ele pos tão longe do céu, o chão que Ele pós tão grande entre nós. Está na hora de encararmos os fatos; o problema é que os fatos e que nos encaram; eles vêem através das paredes, das superfícies orgânicas.

Os fatos nunca enxergam através do amor.


J.

2 comentários:

leonardo marona disse...

porra, Julia! é lindo isso.

beijo.

Anônimo disse...

Soltou-me as amarras, Julia. Por você eu já posso ir.