21.7.09

O Coro

Às vezes gostaria de matá-lo, apesar de ele já estar morto. Apagar qualquer lembrança da sua existência. Não queria queimar fotos e rasgar cartas, queria que não houvessem coisas para rasgar e queimar. "Como se nada tivesse acontecido". As pessoas estúpidas falam, palavras entre soluços em funeirais, sobre superar. Sobre transpor. Não existe ninguém estúpido o bastante para falar sobre esquecer. Não acredito que melhore, ou mesmo que a natureza da dor mude. É como uma doença crônica, você aprende a viver com ela. Um peso, um saco de tijolos que é remanejado de um ombro para o outro. Ninguém se cura, ninguém supera - você simplesmente cria mecanismos de sobrevivência durante o dia que somem durante a noite quando a escuridão não pode negar a morte.

A morte não perdoa ninguém, nós tão pouco perdoamos quem morre. E ninguém esquece de porra nenhuma.

Fazem seis anos que o meu irmão morreu.

A família reunida era absolutamente deprimente. A sombra densa da sua ausência era mais real e sólida que as paredes que continham os vivos. A sombra dos mortos tem um som, arfa e suspira como o mar na praia. Eu tenho certeza que, ao levar uma concha ao ouvido, ouço o lamento de todos os mortos desde o primeiro homem, sem vozes individuais, um coro único que sempre esteve lá, mas que eu só passei a escutar depois que o meu irmão morreu - o meu irmão, agora mais um harmônico tinindo no coro das almas, amplificado por mil sempre que a parentada triste se reuni.

Meus pais são pessoas devastadas, os longos sulcos sob os olhos da minha mãe talvez sejam tão profundos quanto a cova onde deitaram seu filho. A dor deles, tão grave e inconsolável, constragia a nossa, que deveria, por uma convenção social, ter uma graduação mais branda. No pódio do luto minha mãe ocupava o primeiro lugar inquestionável, meu pai levava a prata e eu e meu irmão dividíamos o terceiro degrau. Minha mãe exibia seu troféu frequentemente.
"Eu, que já enterrei um filho,...."
"Quem nunca enterrou um filho não sabe..."
"Desde que meu filho morreu..."

Era como se ela agora fizesse parte de uma nova estirpe, de uma raça de pessoas amargas que realmente conhecem o sofrimento, que podem falar dele com propriedade, como se ela tivesse tirado um PhD na escrotidão da vida. Ela poderia comparar a sua miséria pessoal com a de qualquer refugiado órfão de Serra Leoa.
"Você perdeu uma perna numa mina terrestre?"
"Você foi estuprada por um monte de estivadores?"
"Você tem AIDS?"

"Foda-se. Eu enterrei um filho."


(Sempre estranhei esta locação tão usada, "enterrar um filho", como se ela própria houvesse cavado a cova e a coberto, como se ainda tivesse terra sob as unhas. Acho que talvez seja uma dessas coisas que são ditas pelo seu efeito dramático. Como se precisasse.)

Meu pai, vivendo com uma mulher que carregava o luto com algo próximo do orgulho, tinha vergonha e culpa de sentir qualquer titica de alegria. E assim era a vida deles, um longo exame no qual pegavam, mediam e estudavam a sua desgraça sob diversas luzes e condições.

A família reunida, pois. É natal. Meu irmão teve o mal gosto de morrer perto do natal e o vulto deste evento se estende, de fade in à fade out, por todo o escroto mês de dezembro. Mesmo se não tivesse morrido em dezembro, tivesse morrido em julho, a ausência dele à mesa seria o bastante para tornar o natal deprimente. Talvez não tão deprimente. Como eu já disse, a junção deste pequeno regimento de pessoas ao qual ele pertencia exacerba a ausência. As reuniões de família são todas deprimentes. Alguém sempre chora.

Depois do almoço fui a praia, eu e meu irmão vivo. Eu fui ouvir o coro dos mortos, o que sempre me acalma, meu irmão foi fugir da nossa família deprimente. Sentados no calçadão, sob o sol infernal de dezembro, abrimos nossas cervejas. Vi um gringo gordo e solitário, o mais branco que eu já vi, reluzir sob o sol tropical. Este seria um dia, pelo mar e pelo sol, em que a praia estaria apinhada de gringos como ele (porém nenhum tão branco), apinhada de famílias grandes e centenas de ambulantes estridentes, que anunciam, aos berros, mate, abacaxi, protetor solar, tatuagens de hena, picolés, tudo que eles vendem muito mais caro para os gringos. Mas hoje é natal. A praia está quase vazia e eu consigo ouvir o unísono perfeito dos mortos. Talvez este seja o barulho mais antigo do mundo.

2 comentários:

Jozias Benedicto disse...

muito bom!

Marcelo Novaes disse...

Julia,


Tu não me conheces. Por isso o convite.




Um beijo.