E descobriu-se bela...
O abandono da identidade X uma aceitação da beleza
Sendo maquiada para o olho implacável da câmera, sinto repulsa pelo meu “dia de rainha”. Mãos alheias ao meu corpo, e a unidade que ele representa, me manipulam para tornar minha imagem bela. Minhas sobrancelhas, e todos os meus demais pêlos, são depenados, minha pele arde, sufocada pela quarta camada de reboco cosmético. A chapinha de cerâmica arranca fios e mais fios do meu cabelo a cada nova investida, o curvex besuntado de rímel arranca cílios. Minhas perenes olheiras (fossos, na verdade) são comentadas e batalhadas, a penugem sobre os meus lábios é combatida com medidas drásticas. O secador queima o meu couro cabeludo, o difusor inferniza as minhas orelhas. Minhas unhas são inapropriadas, meus pés são demasiado brutos. Me recomendam que, durante a filmagem, eu não erga os braços para não expor um começo de pêlos sob a axila que não é louvável. Sentada em meu trono, não sinto tristeza, frustração ou raiva. Conforme constroem minha imagem bela o que eu sinto é a minha ausência e um leve enfado.
Terminada a guerra contra os meus defeitos, me vejo no espelho e me descubro bela. É um choque – a realização do meu potencial para uma beleza tão “segura” e controlada me assusta. É uma beleza que não corre riscos, inegável. Esse choque inicial é seguido por um inchaço significativo do ego perante a minha possibilidade de representar essa beleza. Eu não sou essa beleza, eu a represento. “Se eu me maquiar assim, se eliminar tal e tal coisa, se esconder isso e aquilo, seria bela.” Mas, como não faço e não sou assim, me sinto feia – todas as impressões anteriores da minha beleza (numa fotografia em que apareço particularmente bem, na lisonja rasgada de um amante), me parecem falsas. Aquela é a real beleza, pois foi construída metodicamente dessa forma. As minhas construções não são nem tão metódicas, bem realizadas ou totalmente dedicadas.
Aqui, emplastada com quilos de corretivos e atenuantes, represento a beleza, e isso faz eu perceber que não sou bela. Se tenho que a representar, não a sou. Sou uma personagem sem falas, sem motivação além do ser bela. Isso me entedia, me entristece, apesar de uma relutante alegria em abraçar esse papel. Tudo isso é uma espécie de transplante de alma: sou bela, sou outra, sou imagem criada por mãos que não são minhas, por um conceito de beleza que não é meu. A alegria e a tristeza se chocam e eu não sei se estou vestindo um véu, ou se esse véu foi erguido.