21.4.07

Shuffle 3

1-
Lady D’Arbanville - Yusulf Islam

My lady d’arbanville why does it grieve me so?
But your heart seems so silent.
Why do you breathe so low, why do you breathe so low?”

Eu tenho um sorriso branco para os seus olhos escuros, eu tenho mãos delicadas para a sua fronte rude. Um beijo ébrio para os seus lábios mouros. Eu tenho muitas coisas pra você, algumas eu devo devolver, todas aquelas coisas que você me fez querer. Eu tenho um véu para ser erguido. Um corvo vai trazer a noite em seu bico, tão negra quanto suas asas, tão negra quanto os seus olhos; insondável. Sou guiada por calor, como os animais sanguessugas, sou guiada pelo seu pulsar morno, guiada pelo pulso, pelas suas mãos mouras, rudes e escuras.


2- Tigresa – Secos e Molhados

“Enquanto os pelos dessa deusa
Tremem ao vento ateu,
Ela me conta, sem certezas,
Tudo que viveu”

Ela sorve um cigarro e fuma o whisky; me diz que esses truques baratos vão lhe custar muito caro, que um dia vão bater na porta desse apartamentozinho deprimente para cobrar o peso do seu coração em ouro, ouro que ela não tem. Mas me conta dos dias em que era bela, quando estava na crista da onda, por cima da carne seca, acima do trópico de câncer. Foi à Londres, Helsinki, Paris, Madri. Não gostou de Veneza. “Aquela água toda é esgoto! É esgoto e fede que nem esgoto, e esgoto é esgoto, seja cercado por arquitetura renascentista ou por cabeças de porco. Você não acha?” E quem disse que eu tenho direito à opinião?


1-
Todo menino é um rei – Roberto Ribeiro

“Nos meus tempos de menino...
Porém meninos sonham demais,
Meninos sonham com coisas
Que a gente cresce e não vê jamais.”

Ele vestia as sandálias de tira de couro brancas, encardidas. Apesar de gostar da praça, o trepa-trepa, o balanço, a gangorra, detestava aquelas pedrinhas ásperas e rudes que se enfiavam entre seus dedinhos expostos pelas sandalinhas franciscanas. Quando anunciavam, pela manhã, que a babá o levaria a pracinha, era dividido pela alegria e a antecipação do incomodo das pedrinhas. Uma vez pões os sapatos, mas as pedrinhas deram um jeito de entrar lá também (ele tinha certeza que foi na hora que ele brecou o balanço). Durante aquela visita em que calçou sapatos, fez a babá os tirar e botar três vezes, para remover pedrinhas. Ela não gostou daquela função, não deixou mais que botasse os sapatos para a pracinha.

Se aproximou dos pombos, e ela os amaldiçoou berrando algo sobre ratos com asa. Não entendeu, mas achou muita graça.


5- Atrevida – Marcinho & Goro

“Já arranhada você vai pra casa,
Descabelada procura dormir,
Mas no outro dia surgem os reclames
De mais um vexame que passou ali”

A campainha rompeu o silêncio de uma noite que era pacífica. Ele tropeçou da cama, foi em direção ao quarto da mãe e a acalmou com um gesto despreocupado. Andou até o portão e a viu lá, apoiada contra a grade, um cigarro em punho, os cabelo revoltos e o rosto ferido que não mostrava sinal de dor.

“O que você quer?”

“Eu estava aqui perto.”

“E isso te dá direito de tocar na casa dos outros há essa hora? O que aconteceu com você?”

“Você conhece uma Flávia?”

“Flavinha? Filha do Carlinho?”

“Ela mermo. Ficou toda marrenta pra cima de mim, aí eu dei um trato nela.”

Ele suspirou. Esfregou o rosto amarrotado.

“O que você quer?”

“Nada, eu já disse, eu tava aqui perto. Posso entrar?”

“Não, cê vai acabar acordando a minha mãe.”

“Você não me ama mais.”

“Amo sim...”

Ela fez cara de choro.

“Tá bom, tá bom...entra.”

“Eu prometo que não dou escândalo...”

Ele suspirou. Abriu o portão. Treparam em silêncio.


6- The Gringo’s Tale – Steve Earle

“Well I come from West Colorado
And I’ve wandered this world far and wide
I’ve lived for some years in the shadows
And my eyes are unused to this light
If you buy me a strong drink of whiskey
I will tell you the tale of my life
It’s long and it’s sad but it fits me
And it may bring a tear to your eye”

A voz era árida, era entrecortada pela respiração brusca. Se areia falasse, falaria que nem aquele homem. Essas aroeiras magras que nos cercam são as lápides de muitos homens que passaram anos revirando pedras e mastigando cascalho. E ele enterrou muitos desses homens. Antes de crescer já tinha aprendido que, nesse mundo cão, o negócio é matar ou morrer. E ele levou a sério.

Ele passava tardes inteiras olhando para o rio. Olhava o rio, mas não tinha os olhos de quem olhava para um rio. E eu soube por que, eu soube por que um estranho me disse. Há muitos anos atrás um Coronel assassinou seus pais. E ele enterrou os pais no leito do rio, que naqueles tempos estava seco há muitos anos. Mas construíram a barragem, e quando construíram a barragem a água cobriu o leito do rio seco, cobriu os ossos e os trapos de chita, cobriu cabelos e cílios.

Ele partiu pouco tempo depois. Deixou uma trilha de poeira, que só homens muito bravos ousariam seguir. Mas não existem mais homens assim, pelo menos não por aqui. Aqui o leão do norte segue em paz e descansa sob a sombra das aroeiras tortas, sem saber se vai acordar.

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