4.9.06

Outra Quarta-Feira

Da primeira vez que o vi o esqueci logo em seguida. Ele não foi muito simpático, não tanto quanto os seus outros colegas que me cercaram de atenção e cortesia. Falávamos e riamos muito na recepção enquanto ele, nos fundos, jogava Paciência no computador. Às vezes ele parava e, sem mexer o corpo, botava a cabeça de lado, jogada para trás, rindo de alguma coisa recém-dita. Depois voltava ao seu jogo. Em um momento ele girou a cadeira e ficou sentado, lá, olhando para nós. Parecia, por alguns segundos, muito entediado. Quando ele ficava assim o cinza se tornava neutro, sem rumo, e ele botava o polegar sob o coldre, na altura do ombro esquerdo, afagando a tira. Ficava assim por pouco tempo e logo ria da piada do amigo, ria com gosto, uma mão espalmada contra a perna, a cabeça inclinada com vontade, os dentes brancos brilhando, as narinas dilatadas.

Eu havia ido à delegacia dar queixa de um furto – no show do Rolling Stones, na praia, Copacabana. Levaram minha carteira, meus documentos, precisava de um B.O para viajar na semana seguinte – não te deixam entrar no ônibus sem identidade, mas com o B.O deixam. Os policiais foram muito prestativos – conversamos sobre o show, sobre música, eu falei que tocava.

Foi lá que eu o vi pela primeira vez, e todas as outras vezes seguintes.

Na época eu estava lendo muito Rubem Fonseca, um livro atrás do outro, de enfiada. Vai ver que foi por isso que eu prestei atenção nele e o achei charmoso. Ele era o rosto de um personagem que eu gostava. Ele mal olhou para mim e, quando olhou, foi com os olhos entediados, vazios. Olhou através de mim e através do vidro transparente, para a Nossa Senhora de Copacabana. Através de mim. Ele era bonito sim, achei ele bonito, teria o achado bonito se o tivesse visto em um supermercado, no ônibus, na fila do banco. Mas eu provavelmente o achei charmoso por que ele era policial, e por que o personagem do livro era policial. Era um charme por tabela, mas muito real para mim. Eu queria conversar com ele, queria muito saber o que ele acharia de mim. Queria me aproximar e dizer:

“Eu consumo drogas ilícitas, eu não tenho nenhum respeito por figuras de autoridade, eu tenho uma necessidade intrínseca de duvidar delas. Uma vez eu roubei uma garrafa de whisky do Pão de Açúcar. Você me prenderia? Você me beijaria?”.

Ele me causou tudo isso só com um olhar sem rumo e eu sai de lá me achando muito boba. Uma perfeita idiota com uma necessidade de chocar um policial. E logo esqueci dele, dois dias depois ele já não existia em mim.


Alguns meses depois eu passei pela Delegacia (eu passo em frente a ela quase todo dia) indo para o banco, e passei por ele na calçada. O braço dele tocou de leve o meu ombro enquanto eu manobrava, desengonçada, o meu corpo pela calçada apinhada de gente. Deviam ser umas onze da manhã. Ele tinha um copinho de plástico com café em uma das mãos e andava olhando para frente, muito concentrado em soprar o líquido quente e fumegante. Não vestia coldre, nem sorriso ou olhar entediados. Eu vi os olhos dele, por um segundo, através da fumaça do café, e novamente o achei encantador. Não uso muito a palavra “encantador”, mas foi exatamente isso. Quando ele me passou olhei para trás para ver, como os operários fazem quando uma moça passa pela construção. Ele era alto, não tinha reparado da primeira vez por ele estar sentando. Se mexia com certa preguiça, arrastando as solas do sapato nos degraus da delegacia.

Depois disso eu passei a sempre olhar para dentro da Delegacia quando passava por lá, uma vã e irreprimível esperança de vê-lo fazia com que os meus olhos se virassem na direção do vidro, do balcão. Se ele estivesse lá, nos fundos, onde ele fica, eu não o veria. Sempre tinha certeza que ele estava lá e era por isso que eu olhava, mesmo que não pudesse vê-lo. Outro dia mesmo passei lá, revirando o pescoço para enxergar o interior da D.P. E o vi. Ele estava na ali fora mesmo, encostado no retângulo de concreto que emoldura a porta. Fumava um cigarro, filtro amarelo; saiu pra fumar. E dessa vez ele me olhou mesmo, cerrou as sobrancelhas, talvez porque a fumaça houvesse entrado no cinza, ou talvez porque estivesse fazendo um esforço para me reconhecer. Meu olhar deve ter sido estranho, tão concentrado no dele; mas foi isso. Eu continuei andando, afinal de contas o que eu vou falar para ele, afinal de contas, o que ele vai falar para mim? Não vestia coldre, será que eu imaginei o coldre da primeira vez? O coldre era do personagem, será que era dele também? Queria vê-lo vestindo o coldre de novo.

Quem sabe, outro dia, talvez uma quarta-feira.

(...

J.

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