20.9.06

Ilha 104 - A Viagem De Negócios

Em uma manhã nublada de uma quarta-feira, Otávio desembarcou no Rio de Janeiro. Trazia apenas uma mala de rodinhas, composta cuidadosamente na noite anterior, e uma pasta de couro preta contendo papéis enfadonhos que pautariam a sua visita. Não planejava qualquer aventura turística ou passeio agradável pela orla carioca, fizera esses planos em outras viagens ao Rio e eles se perderam entre os papéis enfadonhos que sempre o acompanhavam. E para Otávio onde não haviam planos não havia vontade – não por simples abdicação resignada, mas porque a alegria dele vinha de ver os planos em ação, não da ação em si.
Viajava muito pouco a lazer e, quando o fazia, se sentia na obrigação de voltar à pequena cidade no extremo sul do país, de onde ele e a esposa provinham, e trazer notícias a sua família saudosa. Aos homens reportava a situação da política e da construção civil de São Paulo enquanto sua esposa e as outras mulheres teciam, com dois dedos de maldade e um de desdém, uma prosa investigativa da vida dos locais. Uma vez ficaram lá por duas semanas: foi o máximo que conseguiram sem que Otávio enlouquecesse com as asneiras do pai, e sem que Sílvia atirasse a sogra por uma das amplas janelas do casarão colonial. Mesmo assim Otávio teve que aturar, durante a viagem de volta, o longo relato da esposa, em ordem cronológica, de picuinha por picuinha: “Nós mal chegamos e ela já...” (...) “Você acredita que logo antes da gente ir ela veio me dizer que...”. Ele conhecia bem a mulher que trazia no banco do passageiro e sabia que um pedido de silêncio seria recebido como ofensa e só resultaria em mais falação. Então simplesmente a deixava discursar enquanto tentava se concentrar na paisagem que se embaçava, encoberta pelas palavras incansavelmente metralhadas por Sílvia. É verdade que em alguns momentos queria esganá-la, mas na maior parte do tempo estava contente por não ter que emitir opinião, só ouvir.
Chegou ao Rio de avião e, quando esse se encontrava a poucos metros da pista, já organizava seus horários, locações e exigências profissionais. Toda sua agenda era construída ao redor da sua necessidade de nove horas de sono diárias. Cada compromisso, hora e hora e meia gastas com olhos abertos era apenas uma subtração do tempo que pretendia gastar dormindo. Morfeu era seu grande e verdadeiro amor.
A primeira coisa a se fazer era ligar para Sílvia. Gostava de fazer isso, ela era sempre doce ao telefone. Depois tomaria banho e iria de encontro aos negócios, no Centro, Avenida Rio Branco. A reunião começaria às dez horas, seria interrompida para um breve mastigar em um restaurante à Kilo. Depois disso a coisa ficava detestavelmente incerta, mas não deveria se estender além do fim da tarde. Então seria preciso voltar ao hotel e escrever relatórios, enviar e-mails, solicitar documentos que pudessem estar em falta.
Otávio ligou para Sílvia; ela foi doce. Chuveirada, táxi, Rio Branco. A comida do restaurante à Kilo era muito ruim, mas ninguém parecia se importar. Acabou no fim da tarde. Mandou e-mails, requereu documentos, escreveu relatórios.
Acordou no dia seguinte vitorioso, com suas nove horas de sono conquistadas e um pouco de baba acumulada no canto da boca. Dormiu esparramado de bruços, bem no meio da cama de casal. Luxo ocasional. Não pode comemorar a vitória com a preguiça – os seus minutos, que compunham aquele fabuloso exército de vinte quatro horas, se sacrificaram bravamente em prol de seu sono; metade de um batalhão de sessenta foi dizimada. Estava atrasado para o seminário.
Saiu apressado, sem tempo de arrumar seus papéis, fazer a cama ou catar as roupas espalhadas no chão. Não gostava de deixar as coisas assim.
No táxi tentava lembrar se o hotel oferecia o serviço de camareiras. Não podia evitar sentir um pouco de vergonha em pensar que havia deixado toda aquela zona para que alguém a organizasse. Entendia que era exatamente essa a natureza do trabalho dessas pessoas. Mas não era isso. O que o incomodava era o fato de que a desordem e o descaso eram tudo que refletia sua existência naquele mundo alugado. Os papéis desorganizados e as roupas dispersas não poderiam dar a impressão correta sobre aquele homem correto, que doava casacos velhos para a campanha do agasalho, que na sua juventude batalhou o direito de sindicatos, que se preocupava tanto com a ordem e a retidão.
Durante o seminário, Otávio não conseguia se concentrar em nada do que era dito pelo principal palestrante. Olhava o relógio, impaciente, e pensava se elas já haviam vindo ou não, se elas estavam lá naquele momento. Reviu, desgostoso, seu último flash do quarto. No banheiro só havia estado para tomar uma ducha...

Não.

Por volta das cinco da manhã acordou com uma ereção. Sim, lembrava-se agora. Foi ao banheiro se aliviar e gozou com força e abundância que não lhe eram comuns. A porra atingiu a parede, na altura de seu umbigo, e escorreu para baixo, volumosa. Limpou tudo com papel higiênico.

Tudo?

Não seria exagero dizer que a esta altura Otávio estava extremamente nervoso. Procurou, no seu vago acervo de imagens daquela punheta sonolenta, algum traço de porra negligenciado na parede, no chão. Os azulejos eram brancos, as luzes não estavam todas acesas, era provável que alguma amostra houvesse permanecido lá, para ser encontrada por elas, para se juntar as outras evidências que comporiam o seu retrato mudo, indefeso, frente aquelas mulheres cruéis. Pois seriam mulheres, com certeza e, com certeza, o julgariam, o pintariam como um porco solitário. De fato seria mais de uma, seriam duas que trocariam entre si achados e risadas. O xingariam por ter de limpar sua esporra, da qual ele próprio tinha nojo.

Talvez ainda não fosse tarde demais. Talvez ainda não. Ligaria para o hotel naquele minuto, proibiria expressamente qualquer visita de qualquer camareira ao quarto 104.

Se espremeu através da platéia lotada a alcançou um corredor silencioso da onde poderia fazer a ligação. Procurou em todos os bolsos, da calça, do paletó e da pasta, o telefone celular. Procurou em vão; na pressa o abandonou na mesa de cabeceira. Não bateu com a cabeça contra a parede, mas teve muita vontade.
Otávio renegou a mesa redonda e se algum colega perguntasse em que pé estava o debate não saberia responder. Nada havia ouvido ou visto. Apanhou um táxi e nem enxergou a praia por onde passou. Calou o motorista, com grunhidos peçonhentos, todas as vezes que ele tentou puxar uma conversa. Otávio pagou e saiu apressado, fazendo o taxista se afastar com um pouquinho mais de fé no estereotipo do paulista estressado.

Passou batido pelo lobby, perguntar qualquer coisa levantaria suspeitas.

Abriu a porta, respiração staccato. Viu a colcha novamente cobrindo a cama, os papéis empilhados junto ao laptop, as roupas penduradas na cadeira. Tarde demais, tarde demais. Desconsolado entrou no banheiro e, acendendo todas as luzes, procurou algum indício do seu espólio viscoso. Não encontrou nada.
Uma hora depois fez o check-out. Passou os dois dias restantes em outro hotel. Não podia mais ficar ali, convivendo com as supostas impressões das camareiras.
Ligou para a esposa para informar a mudança de paradeiro. Ela ficou curiosa e quis saber o porquê daquela migração súbita. Otávio deu de ombros, como se ela pudesse o ver: “Não limpavam direito lá, era muito sujo.”



J.

Um comentário:

Anônimo disse...

Tem muito ritmo, Juinha. Quase dá para ler batendo o pé como eu fazia para acompanhar a flauta doce, quando eu tocava. Já parou alguma vez para pensar em métrica?