10.9.06

Ilha 103
Coke, Chair & Noose (Uma Canção Para Ricardo Manuel)


Richard Manuel se matou em um quarto de motel, devia ser um quarto parecido com esse, um quarto barato, ele já estava sem muito dinheiro. Foram as drogas e a falta de dinheiro, ou talvez o dinheiro e a falta das drogas. Mas dizem que ele ameaçava o tempo todo, fazia o nó o tempo todo, ninguém mais levava a sério. Achavam que era só uma tentativa patética de um junkie para chamar a atenção.

Checked in, never checked out.

Ele chegou lá com a esposa. A esposa o amava muito, sempre o impedia no último minuto, tinha salvado sua vida incontáveis vezes, apesar de nunca acreditar que a vida dele realmente estivesse em risco. Ela já não estava botando muita fé nos extremos da depressão de Manuel. Qual seria o nome dela? Diana? Martha? Sue? Rita? Pam?

Dizem que na época ela estava tendo um caso, já pensava em largar Richard, não agüentava mais a depressão crônica, os cortes rasos e covardes nos pulsos, a corda no pescoço literal e metafórica. Foi em um quarto igual aquele, com certeza, ela o viu mais uma vez fazendo o nó com os olhos imóveis, posicionando a cadeira, os olhos castanhos vítreos, loucos, estreitos, secos.

“Ah, Richard, como era belo o seu falsete, como era belo, ninguém tinha um falsete mais bonito! Como um anjo, a voz como a de um anjo!”

(...)

Quando viajava durante as férias, Frank preferia ficar em hotéis baratos. Os grandes hotéis de cinco estrelas estavam muito associados ao seu trabalho já que esses eram os tipos de hotéis escolhidos para abrigá-lo em países estrangeiros durante suas andanças profissionais. Hilton, Sheraton, Mariott – esses estavam fora de questão para uma viagem como aquela. Sim, o mínimo de conforto era necessário; roupa de cama limpa, uma camareira ocasional, serviços de lavanderia, um bar no lobby; o resto era inteiramente dispensável. Além do mais quem pagava as contas dos hotéis caros era a empresa, ali tudo viria dos seus bolsos que, por mais fundos que fossem, eram bem guardados pelo que ele classificaria como “uma noção da importância do dinheiro ganho com o trabalho honesto instalada em mim por meu pai”, mas que na verdade não passava de pura muquiranice.

Abriu a janela! No U.S as janelas dos quartos normalmente não abrem; uma medida provisória contra suicídios. No Hilton, em qualquer Hilton do mundo, a janela não abre por inteiro. Só te dão uma fresta egoísta, incapaz de acomodar a passagem de um corpo desesperado. “Vai ver foi por isso que Ricky se enforcou – não podia se jogar.”

Ele pensava nisso enquanto desfazia as malas. Poderia ter pensado nas suas novas percepções sobre aquele país estrangeiro, nos seios da garota da recepção, ter projetado esperanças de cópula selvagem sobre os lençóis gastos. Mas pensava no fim de Richard Manuel em um quarto que, ele tinha certeza, era igual aquele onde agora ele contava aquele dinheiro estranho. Frank tinha dinheiro e se sentia bem disposto, como um garoto. Nos dias frios suas costas doíam como se desmoronassem sobre elas todo o peso de seus 55 anos, mas ali, no esplendor morno daquele país tropical, sentia sua juventude, a muito enterrada sobre pounds de cinismo coorporativo, ascender lentamente, como um vapor, em direção a seus lábios. Os prédios ao redor do hotel, tão feios, tão pobres, eram belos aos seus olhos dispostos a ver beleza subjetiva em tudo que lhe era desconhecido. Viu um pássaro, em uma rasante magnífica, capturar uma borboleta amarela. Uma idéia lhe veio, abrupta, “antes do predador do que a presa.”. Não poderia explicá-la, mas naquele momento pareceu-lhe um vislumbre de genialidade.

Espreguiçou-se com vigor frente à janela, sentindo um resto de sol preguiçoso arder em seu antebraço. Uma melodia passeava presa por sua garganta, mas ele não conseguia identificá-la, faltavam palavras para que ele pudesse articular aquela canção que o perseguia desde a hora em que ele chegara ao aeroporto em Dallas. Era como uma dor de ouvido crônica que ia e vinha, mas estava sempre ali. Tinha sumido no avião; vai ver foi a despressurização da cabine. Frank já não pensava no triste fim de Richard Manuel, agora se esforçava para compor um figurino que justificasse todas as promessas doces que o vento poluído de fim da tarde sussurrava em seus ouvidos. Sobre a cadeira botou a única peça que seus motivos não questionavam – a camisa. Não era nem usada o bastante para detonar falta de dinheiro e descaso, nem tão nova a ponto de gerar a percepção de janota deslocado. As listras verticais diminuíam a barriga (que ele sequer tinha, mas ouvira tanto sobre o benefício adelgaçador das linhas verticais que se sentia na obrigação de lançar mão desses conhecimentos) e alongavam seu tronco compacto. Era justa o bastante para fazer jus às cinco horas semanais gastas em uma academia, e folgada o suficiente para evitar conflitos com a sua masculinidade. Tendo a camisa como base, construiu o resto do conjunto com facilidade – a calça de jeans preto, as finas meias brancas e um belo par italiano de couro marrom-brilhante. Uma vez vestido, penteou-se com esmero, fazendo uso de grandes quantidades de um gel transparente, e se mediu no espelho. Ele não era exatamente belo, mas tinha o que a sua ex chamava de um “charme essencial” que se traduzia nos seus movimentos não-calculados: o ângulo das sobrancelhas quando demonstrava preocupação, a forma como manuseava um copo, suas passadas firmes e irregulares que frustravam as tentativas de sua ex de caminhar ao lado dele – hora os passos eram curtos e lentos, hora longos e rápidos, sempre imprevisíveis.

Observava a janela enquanto esperava um telefonema de seu único amigo brasileiro que havia lhe prometido leva-lo a lugares maravilhosos, cheios de moças fogosas facilmente seduzíveis pelo almighty dollar. Frank imaginava todas as estórias fantásticas que iria contar para seus amigos quando os revisse em Houston - os velhos babões estariam ansiosos para ouvir os mínimos detalhes, mas ele narraria tudo com o seu melhor ar blasé, esperando que eles exigissem as respostas para as perguntas que ele sabia que fariam. A inveja dos amigos casados seria sua vingança por todas as vezes que o fizeram ver suas enfadonhas fotos dos filhos e da esposa tiradas em um ski –resort em Aspen e, mais ainda, uma vingança contra uma parte, insignificante, dele que gostaria de ser uma pessoa ocupada com filhos e uma esposa que posassem para fotos vestindo roupas histriônicas em montanhas brancas. Mas esse era só um lampejo de uma outra vida que o assaltava em algumas raras madrugadas especialmente silenciosas e não era digno de ser revisitado naquelas circunstancias tão livres e promissoras.

O suor começou a acumular-se nas suas pequenas costeletas bem aparadas e na parte de trás da sua nuca. Morava no Texas há anos e mesmo assim não havia se acostumado ao calor, tão raro e gentil na gélida Detroit, sua terra natal. Também não havia se habituado aos ar-condicionados, que lhe faziam espirrar incontrolavelmente. Quis aproveitar a tão rara ocasião de estar em um quarto de janelas mais manejáveis – abriria todas e deixaria o vento entrar e limpar aquele ar moroso e cansado. Abriu as janelas ao máximo e, olhando para cima, resolveu fazer o mesmo com os basculantes estreitos e compridos. Ergueu os braços e esticou o corpo tentando alcançar a manivela prateada, mas mesmo na ponta dos pés seu esforço foi inútil. Viu a sombra da cadeira, de rabo olho, projetada no chão, e resolveu usa-la. A cadeira era leve, ele a posicionou logo abaixo da alavanca e lá subiu. A alavanca de metal estava quente. Forçou-a até que ela gemeu um pouco, mas recusou a se mover. Redobrou a força, sem resultado. Com uma determinação irritada, debruçou todo o peso do corpo na alavanca que estalou e cedeu repentinamente, fazendo Frank se desequilibrar por um instante. Quase recobrou o equilíbrio no último segundo, mas já era tarde demais: caiu de costas no chão, o tronco e os braços primeiro, a cabeça aterrisou sem sofrer os danos que foram absorvidos pelo resto do corpo. Deitado no chão, olhando para o teto manchado por infiltrações, Frank calmamente avaliou as dores que cercavam seu corpo e, rindo, se despediu da sua sensação de juventude brevemente reconquistada. Virando a cabeça para a esquerda viu a cadeira tombada de lado e novamente pensou na morte de Richard Manuel.


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Richard Manuel se matou em um quarto de motel em Orlando, Flórida, 4 de Março, 1986, depois de um show. Ele tinha 42 anos, ele era canadense, estava muito longe de casa. Algumas fontes dizem que ele estava lá com a esposa. Quando ela saiu do quarto por alguns minutos, Richard amarrou uma corda em uma viga no teto e pos o outro extremo, em nó, ao redor do pescoço. Subiu em uma cadeira e de lá pulou para a morte. Foi encontrado pela esposa poucos minutos depois. Junto à cadeira tombada encontraram um montinho de cocaína e uma garrafa de Grand Marnier.


J.

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