19.6.07

1- Vouloir – Julia Debasse

“Velours, je avais attendu
Venes couvrir cette croix
Velours, enfin vennu
Je avais etrê aveugle avec toi”

Sempre sentia subir pela espinha. Sem pressa, uma peça de cada vez, deixa o desejo crescer até ficar insuportável - a rasante do corvo, as asas tocando o vale que divide as minhas costas. O rastilho de pólvora estava ali, no vale, onde os seus dedos se enfiavam para me segurar. O rastilho de pólvora ligava a pélvis até a base da nuca, era muito claro. Morno e circular, os beijos e o movimento dos quadris. Contornos feitos com dedos e línguas.


2- Palhaço – Dalva de Oliveira

“Sei que é doloroso um palhaço
Se afastar do palco por alguém.
Volta que a platéia te reclama,
Sei que choras palhaço,
Por alguém que não te ama.”

Aqui, debaixo dessa lona, montamos o nosso circo. Ali a esquerda ficava a jaula
dos leões, no fundo, o globo da morte. Lá em cima, é claro, ficavam os trapézios e a corda do equilibrista. Eu juro, é verdade, eu não sou louco. Depois do espetáculo eu fui dormir, que nem todos. Isso daqui estava cheio ontem, eu te juro. Crianças, amendoim, pipoca, toda essa coisa.

Depois do espetáculo fomos todos para os nossos trailers, lá no fundo. Eu divido o meu trailer com o encantador de serpentes. Fomos dormir depois de desmontar tudo, exaustos. Acordei essa manhã e vi o meu trailer vazio. Sai e não havia mais nada, só a lona. Foram embora, levaram tudo e me deixaram para trás. Moço, eu juro que tinha um circo aqui, eu juro. Eu sou palhaço mas não sou louco.


3- That’s Life – Frank Sinatra

“That's life, that's what all the people say.
You're riding high in April,
Shot down in May
But I know I'm gonna change that tune,
When I'm back on top, back on top in June.”

Vamos lá, enxugue essas lágrimas, esse não é o pior dia da sua vida. Haverão dias piores, eu te garanto. E quando esses chegarem o passado parecerá completamente inocente. É como aquele rabino me disse uma vez: “se sempre dá pra ficar pior, o pior nunca acontece.” É um consolo que não consola, mas não pode ser negado.

E hoje? Tão feliz em te ver tão feliz. Mas esse não é o melhor dia da sua vida, baby. Haverão dias melhores. O presente sempre desbanca o passado no hall das grandes alegrias e grandes tristezas. O que está aqui agora é sempre o mais real. O mais doloroso e o mais alegre. Não feche o hall. A vida se encarregará de fazer novas colaborações.


4- Everybody Out Of The Water – The Wallflowers

"It ain’t me that you feel
There’s something moving around in here.
Well, that’s blood, that’s tears,
This ain’t warning :
Everybody out of the water.”

Isso não é um treino, isso não é um alarme falso, não dá pra relaxar e gozar. Gozo, só se for alívio. Venha, me dê a mão, nós precisamos sair daqui agora, ainda temos que enfrentar os tubarões e a hipotermia. Não avise os outros, sem pânico, não erga a sua voz. Olhe todas essas pessoas, elas te pisotearam em cinco segundos. Eu sou a voz calma de aeromoça no seu ouvido e até nos sairmos daqui eu repetirei: “Não entre em pânico, não entre em pânico, tudo vai dar certo.” Eu não te prometo sobrevivência, mas te garanto botes infláveis e máscaras de oxigênio despencando no seu colo. Tudo para você acreditar que pode sair daqui vivo.

Eu menti. Faça as suas preces.

5- Sentado À Beira Do Caminho – Erasmo Carlos e Roberto Carlos

"Carros, caminhões, poeira, estrada, tudo, tudo
se confunde em minha frente
minha sombra me acompanha
e vê que eu estou morrendo lentamente"

Beiras de estrada são o Limbo, estão sempre no meio do caminho. Lá dentro não dá pra saber quem está indo ou quem está voltando. Por mais variada que seja a fauna, ficamos todos iguais sob a luz fria que enfeia sem perdão, entre as bugigangas e as lembrancinhas de última hora. Somos todos crianças não batizadas, com a boca cheia de salgado e café requentado. Todo mundo tem que dar cinqüenta centavos para que a ex-puta te entregue um macinho de papel e te deixe usar o banheiro. Lá dentro as mulheres tentam se reconhecer no espelho.

Lá fora é o deserto, o deserto aberto da estrada e dos fumantes desesperados. O último de muitos cigarros, a carência de um punhado de cães sarnentos. Você quer tocá-los, mas tem nojo. É céu, asfalto e nada mais.


6- Who Do You Love - Bo Diddley, Muddy Waters & Little Walker

“I got a tombstone hand and a graveyard mind,
I lived long enough and I ain't scared of dying.
Who do you love? Who do you love? Who do you love?”

Venha aqui, sente no meu colo e me conte, me conte o que você nunca contou pra ninguém. Eu sei quem eu sou, eu sei quem você é, mas o que eu preciso saber, o que eu preciso que você me diga agora mesmo, é quem é que eu sou pra você.

Eu não sou dessas meninas que você encontrou por aí. Eu nunca fui menina. Passei o tempo em que deveria ter sido menina bebendo do copo dos outros. Acordei aos quinze anos com a ressaca de uma vida inteira. Os olhos de uma mulher de quarenta e o coraçãzinho retardado de uma adolescente. Isso pode ser muito perigoso, muito perigoso para mim.

Quem você ama? Em que porto está o seu coração?

Eu fiz construí a minha casa com os ossos de cavalo. As vigas são feitas de espinha de cascavel. Cuidado aqui, limpe bem os pés antes de entrar.


7- Lucky Stars - Mary Gauthier

I'm counting on my lucky stars,
I used to count on you.”

Eu só vi uma estrela cadente em toda a minha vida. Em Minas, enquanto esperava um Lobo Guará que nunca apareceu. Vai ver não era uma estrela cadente, vai ver o meu olho só esticou o brilho de alguma estrela imóvel e vulgar, que não era nem a primeira nem a última da noite. É possível, eu estava bêbada de vinho de jabuticaba. Mas de qualquer forma, eu não soube o que pedir. Nenhum desejo foi tão súbito quanto a estrela. Vai ver eu realmente não precisava de mais nada além daquela garrafa de vinho de jabuticaba. Mas duvido. Acho que depois de tantos santos e cartas de tarô terem negado o meu desejo, não quis gastar a estrela cadente com o que eu já sabia que não podia ter. Então não sobrou nada pra pedir.

Em retrospecto, deveria ter pedido pro Lobo Guará aparecer. Queria muito ver ele.

8- Jezebel - Charles Aznavour

“Jezebel... Jezebel...
Ce démon qui brûlait mon cœur
Cet ange qui séchait mes pleurs
C'était toi, Jezebel, c'était toi.”

Essa foi a bandeja que serviu a cabeça de João Batista, essa da onde Jezebel agora cata um amuse-bouche delicioso.

Jezebel governa um Adão ganancioso. Se ele morre, tem sempre outro na fila. Maridos, filhos, irmãos. A fila anda, comandada pelos olhos de naja de Jezebel. Irmã de Salomé, prima de Dalila, filha de Eva, ex-costela que ainda vive no corpo dos homens. Ela orquestra as guerras movendo os braços com gestos graciosos. Sorrindo, retoca a maquilagem para morrer bonita.

Um comentário:

Anônimo disse...

Minha poetisa favorita, acho lindo como você se transforma em palavras. Será que algum dia vou te conhecer tão bem que não me surpreenderei mais? Tomara que não. Um beijo de boca de palhaço com gosto de pólvora